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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
DESLOCAMENTO E DISCURSOS DA MEMÓRIA EM
INVENTARIO SECRETO DE LA HABANA, DE ABILIO ESTÉVEZ
Lays Gabrielle Neves Moreno
DESLOCAMENTO E DISCURSOS DA MEMÓRIA EM
INVENTARIO SECRETO DE LA HABANA, DE ABILIO ESTÉVEZ
Lays Gabrielle Neves Moreno
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos – Literaturas Hispânicas).
Orientadora: Professora Doutora Elena C. Palmero González
Deslocamento e discursos da memória em
Inventario secreto de La Habana,
de Abilio Estévez
Lays Gabrielle Neves Moreno
Orientadora: Profª. Drª. Elena Cristina Palmero González
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos/ Literaturas Hispânicas).
Presidente, Profª. Drª. Elena Cristina Palmero González – UFRJ Professora Doutora Silvia Inés Cárcamo de Arcuri- UFRJ Professor Doutor Rafael Eduardo Gutiérrez Giraldo- PUCRJ
Agradecimentos:
Agradeço a Deus que me permitiu encerrar mais um importante ciclo da minha vida.
Mesmo com tantos obstáculos e aventuras ao longo desse árduo percurso, a
chegada é doce, doce.
À UFRJ e ao CNPq pelo apoio acadêmico e financeiro necessários para a realização
desta pesquisa. Ao órgão financiador desta pesquisa, em especial, por proporcionar
assistência com prorrogação de bolsa à pesquisadora gestante, garantindo minha
permanência no meio acadêmico sem que para isso tivesse que abrir mão ou adiar
os sonhos de ser esposa e mãe.
À minha orientadora Elena C. Palmero González, pelos incentivos e silêncios nos
momentos certos. Por sua coerência e sensatez em tudo que faz. Eu me orgulho de
ter sido sua orientanda. Te agradeço pelo voto de confiança. Levarei para a minha
vida todos os seus ensinamentos.
Aos professores que, de bom grado, aceitaram fazer parte da banca: Professora
Doutora Silvia Inés Cárcamo de Arcuri - UFRJ e Professor Doutor Rafael Eduardo
Gutierrez Giraldo- PUCRJ.
Ao professor Ary Pimentel por ter feito eu me encantar pela literatura hispano-
americana durante as aulas da graduação. Por me acompanhar de perto durante o
processo de preparação para entrar no mestrado. Foi essencial o seu estímulo, todo
o seu incentivo.
Aos demais professores que ajudaram a tecer minha formação acadêmica e
humana: Ary Pimentel (Literatura hispano-americana), Antonio Ferreira (Prática de
Ensino do português e do espanhol), Elena Palmero González (Literatura hispano-
americana), Maria Mercedes Quitans Sebould (CLAC), Miguel Ángel Zamorano
(Pós-graduação), Silvia Inés Cárcamo de Arcuri (Literatura espanhola e hispano-
americana), Maria do Carmo Cardoso da Costa (Espanhol e CLAC).
Aos amigos que sempre escutaram minhas angústias de mestranda e souberam me
confortar de alguma forma, sendo grandes exemplos, fornecendo bibliografia ou
ombro amigo: Ana Cristina Simões de Araújo, Beatrice Bruno Tuxen, Camilla
Ramos, Carolina Corrêa Gonçalves, Cláudia Sulami, Danielle Russo, Danielle
Terceiro, Elen Fernandes, Fernanda Orphão, Imara Cecília Silva, Gustavo Coimbra,
Suelem Ferreira, Taiana Cristina da Rocha Braga e Thaís Maria de Jesus Branco.
Ao Movimento dos Focolares e à família expandida que me deram força e coragem
para viver o amor na dor.
À minha família e à família do meu esposo, que representam meu alicerce.
Aos meus sogros German Luiz Rafael Moreno e Christina Saraiva Moreno que em
mais uma de suas infinitas demonstrações de amor, foram presença essencial,
foram a luz no fim do túnel. Obrigada também Emanuel e Juliana que aceitaram a
troca de casas e Marina Chiara por me lembrar de sorrir em meio ao caos de escrita.
À minha mãe, Almerinda Gonçalves, que me recebeu de alma e coração puros,
carinho e gratidão maior não há. Sei que se pudesse e se tivesse tempo teria me
ajudado mais com questões práticas na elaboração deste trabalho. Os pais fazem
tudo pelos filhos. E tudo que tenho e sou devo a você. No doutorado você também
estará lá. E no pós-doutorado e em tudo que venha além da vida e da morte.
Ao amado esposo que soube e sabe preservar todo o amor que existe em mim,
Inácio Saraiva Moreno, que topou embarcar nessa aventura comigo (durante o
mestrado nos casamos e tivemos uma linda macaquinha). Nunca saia de perto de
mim. E entre tantas coisas, obrigada por resgatar em mim o significado de se confiar
e ter fé na Providência, vivendo o presente de cada dia da maneira que melhor se
pode viver. Hoje nossas vidas estão completas.
À minha filha, Catarina Neves Moreno, que no meu ventre alegrou meu coração e
hoje nos meus braços alegra a minha alma. A você dedico essa dissertação.
Ao meu irmão, Lucas Gonçalves Neves, pois quando se trata de superação,
impossível não lembrá-lo.
DESLOCAMENTO E DISCURSOS DA MEMÓRIA EM
INVENTARIO SECRETO DE
LA HABANA, DE ABILIO ESTÉVEZ
Lays Gabrielle Neves Moreno
Orientador: Elena Palmero González
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro- UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos – Literaturas Hispânicas)
Esta dissertação apresenta um estudo
de Inventario secreto de La Habana (2004), do escritor cubano Abilio Estévez, tendo como objetivo a caracterização de uma poética do deslocamento no contexto da escrita contemporânea hispano-americana. Especificamente, o estudo se propõe a analisar como opera o trabalho da memória no caso de escritores que produzem sua obra vivendo fora do seu país de origem, em contato com outras realidades culturais e de que maneira os mais variados discursos da memória se cruzam na escrita destes autores imersos no atual cenário de mobilidade cultural. Busca-se reconhecer como deslocamento, memória e discursos da memória se articulam na obra de um escritor como Abilio Estévez. Como referencial teórico me apoio nos estudos sobre deslocamento e diáspora de James Clifford (1995), Stuart Hall (2005) e Elena Palmero González (2010, 2011, 2012); no âmbito do discurso da memória recorremos a Santo Agostinho (1955), Andreas Huyssen (2000), Abil Trigo (2003) e Beatriz Sarlo (2012); e a Philippe Leujune (2008), Sylvia Molloy (1996) e Leonor Arfuch (2010, 2013) no que tange às discussões em torno do discurso autobiográfico e autorreferencial.
Palavras-chave: Abilio Estévez; literatura hispano-americana; deslocamento cultural; poéticas do deslocamento; memória; discursos da memória.
DESPLAZAMIENTO Y DISCURSOS DE LA MEMORIA EN
INVENTARIO SECRETO
DE LA HABANA, DE ABILIO ESTÉVEZ
Lays Gabrielle Neves Moreno
Orientador: Elena Palmero González
Resumen da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro- UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos – Literaturas Hispânicas)
Esta disertación presenta un estudio de
Inventario secreto de La Habana (2004), del escritor cubano Abilio Estévez, teniendo como objetivo la caracterización de una poética del desplazamiento en el contexto de la escritura contemporánea hispanoamericana. Específicamente, el estudio se propone analizar cómo opera el trabajo de la memoria en el caso de escritores que producen su obra viviendo fuera de su país de origen, en contacto con otras realidades culturales y de qué manera los más variados discursos de la memoria se cruzan en la escritura de estos autores inmersos en el actual escenario de movilidad cultural. Se busca reconocer como desplazamiento, memoria y discursos de la memoria se articulan en la obra de un escritor como Abilio Estévez. Como referencial teórico me apoyo en los estudios sobre desplazamiento y diáspora de James Clifford (1995), Stuart Hall (2005) y Elena Palmero González (2010, 2011, 2012); en el ámbito del discurso de la memoria echamos mano a Santo Agostinho (1995), Andreas Huyssen (2000), Abil Trigo (2003) y Beatriz Sarlo (2012); y a Philippe Leujune (2008), Sylvia Molloy (1996) y Leonor Arfuch (2010, 2013) en lo que tiene que ver a las discusiones em torno al discurso autobiográfico y autorreferencial.
Palabras-clave: Abilio Estévez; literatura hispanoamericana; desplazamiento cultural; poéticas del desplazamiento; memoria; discursos de la memoria.
DISPLACEMENT AND MEMORY SPEECHES IN
INVENTARIO SECRETO DE LA
HABANA, BY ABILIO ESTÉVEZ
Lays Gabrielle Neves Moreno
Orientador: Elena Palmero González
Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro- UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos – Literaturas Hispânicas)
This dissertation presents a study of secret inventory of Havana (2004 ) , by Cuban writer Abilio Estévez , aiming the characterization of a poetics of displacement in the context of Latin American contemporary written. Specifically, the study aims to analyze how it operates working memory in the case of writers who produce their work living outside their country of origin, contact with other cultural realities and how the most varied memory discourses intersect in the written these authors immersed in the current scenario of cultural mobility. It seeks recognition as displacement, memory and memory discourses are articulated in the work of a writer like Abilio Estévez. As a theoretical framework I rely on studies of displacement and diaspora of James Clifford (1995 ) , Stuart Hall (2005) and Elena Palmero González (2010 , 2011, 2012 ) ; in the field of memory discourse we resorted to Santo Agostinho (1955 ), Andreas Huyssen (2000 ) , Abil Trigo ( 2003) and Beatriz Sarlo (2012 ) ; and Philippe Leujune (2008 ), Sylvia Molloy (1996) and Leonor Arfuch (2010 , 2013 ) in what has to do with the discussions on the autobiographical and self-referential discourse.
Keywords: Abilio Estévez; Hispanic American literature; cultural displacement; poetics of displacement; memory; memory speeches.
Sumário
I - DESLOCAMENTO CULTURAL E AS POÉTICAS DO DESLOCAMENTO.20
Os deslocamentos na contemporaneidade: a nova imaginação em movimento.21
A escrita em deslocamento de Abilio Estévez:
Inventario secreto de La Habana.29
O protagonismo da memória no discurso contemporâneo .43
Inventario secreto de La Habana: a memória em deslocamento………………….……….….47
Discursos da memória em
Inventario secreto de La Habana.59
O eu que lembra e o eu que fala em
Inventario secreto de La Habana.73
REFERÊNCIAS . 81
Muitas tintas me pintaram
Muitas cores eu não vi
Dos versos que me cantaram
Fiz-me eu mesmo e o que há em mim
Ensinaram-me a pensar
A ser, a crer e existir
Não ensinaram o que há além-mar
A perceber, a reagir
Não, não vou para onde queres
E não sei para onde ir
Eu não vou para onde queres:
Vou renascer, redescobrir
Muitas tintas me pintaram
Muitas cores eu não vi
Dos versos que me cantaram
Não sei mais: desaprendi
No âmbito da mobilidade cultural na contemporaneidade a noção de
deslocamento torna-se central nos estudos da cultura, abrindo um fecundo espaço
para a discussão de problemas que dominaram o pensamento moderno, mas que
em condições de pós-modernidade adquiriram novos significados. Um tema central
nesses debates tem a ver com a recuperação historiográfica de uma ampla
produção literária produzida no
entre-lugar cultural que se gera com esses
deslocamentos, produções que têm uma relação conflituosa com o chamado cânone
literário nacional ou continental e, consequentemente, com a historiografia literária,
como é o caso do objeto de estudo dessa dissertação: a literatura hispano-
americana produzida em condições de deslocamento isto é, a literatura hispano-
americana fora do âmbito geográfico das Américas.
Nessa conjuntura, a noção de deslocamento vem ocupando também um
lugar de destaque na crítica literária, considerando que o deslocamento pode ser
considerado uma poética da escrita (PALMERO GONZÁLEZ, 2010, 2011 e 2012) no
caso das literaturas que conformam o quadro das diásporas contemporâneas, em
resposta à necessidade crescente de caracterização das novas formas de
apropriação do lugar e da nova imaginação em movimento (APPADURAI, 2001) que
a subjetividade moderna veio a inaugurar.
Na literatura hispano-americana contemporânea, em específico, observa-
se uma gama de obras literárias que, dentro do circuito da mobilidade cultural, são
expressivas dessa poética do deslocamento. Seu estudo, portanto, urge
reconhecimento e caracterização e a aproximação ao sistema narrativo de autores
que conformam esse cenário se faz cada vez mais necessária, ao passo que nos
possibilita reconhecer seus elementos estéticos configuradores, norteadores dessa
Essa dissertação é fruto das discussões e pesquisas do projeto que se
desenvolve no Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas da UFRJ,
Poéticas do deslocamento nas letras hispânicas contemporâneas: mobilidades
culturais e historiografia literária, que tem como objeto de estudo as literaturas que
se produzem sob condições de trânsito intercultural. Individualmente, os integrantes
dessa pesquisa desenvolvem projetos próprios, selecionando autores e obras que
possibilitam oferecer fontes para estudos de natureza histórico-literária que
integrem, de maneira mais harmônica, as literaturas produzidas em condições de
extraterritorialidade e deslocamento cultural.
O projeto que desenvolvo nesse trabalho coletivo maior, é o que dá título
a essa dissertação: "Deslocamento e discursos da memória em
Inventario secreto de
La Habana, de Abilio Estévez". Interesso-me na caracterização de uma poética do
deslocamento na obra de Abilio Estévez, particularizando na forma em que é
assumido o trabalho da memória em
Inventario secreto de La Habana, bem como
nas variadas formas discursivas em que o memorialístico entra em seu discurso
narrativo, fundamentalmente através da hibridação dos discursos da autobiografia,
da autoficção, das memórias, das crônicas, do diário e do inventário.
Reconhecido dramaturgo, poeta, romancista e contista, Abilio Roberto
Estévez Pazo, nasceu em Cuba em 1954 e atualmente vive na cidade de Barcelona,
importante centro editorial do mundo hispânico, no qual o escritor tem conseguido
instaurar, com êxito, sua produção dos últimos vinte e cinco anos. O escritor viveu
na ilha até o ano 2000, data em que passou a residir na Europa, de maneira que
uma parte importante de sua vida e de sua formação como escritor acontece na
Havana, cidade natal do artista e tema central do romance que estudo nesta
Apesar de sua relevante produção como dramaturgo1 e polifacetada
produção artística, é a sua criação no âmbito da narrativa a que será aqui estudada,
problematizando a maneira em que essa escrita se insere no cenário
contemporâneo das mobilidades culturais, do trânsito de imagens, de pessoas e de
informações, que configuram nosso século XXI.
Dentro do gênero narrativo destacam-se suas obras:
El año del Calipso
(2012),
El bailarín ruso de Montecarlo (2010),
El navegante dormido (2008),
Inventario Secreto de La Habana (2004)- nosso objeto de estudo,
Los palacios
distantes (2002) e
Tuyo es el reino (1998). Apesar de suas singularidades estéticas,
existe um diálogo entre todas elas, tendo como ponto comum o referente da ilha em
diferentes contextos históricos. Ainda que elas não tenham sido concebidas como
continuidade narrativa, a crítica aponta para uma possível leitura desses textos
como uma saga, a saga da Havana na obra de Estevez2.
No imaginário do narrador cubano a Havana é protagonista: em toda a sua
produção narrativa a cidade cubana é imaginada, inventada e textualizada, ainda
que não haja a intenção de fazê-lo. Os distanciamentos físico e temporal
vivenciados pelo autor, entretanto, deslocam o olhar que se lança à terra natal e
1 Destaco sua peça teatral
La verdadera culpa de Juan Clemente Zenea (1987), galornada com o prêmio "José Antonio Ramos", uma obra de referêcia no teatro cubano do século XX. Outras relevantes produções teatrais:
La noche y
Un sueño feliz (1997);
Ceremonias para actores desesperados (2004);
Un sueño feliz. La noche (2013)
.Los adioses, (Dos ceremonias para actores desesperados) (2015)
2 Ver nesse sentido o ensaio de Elena Palmero González,
El rastro y la ruina: tras la huella de Antonio José Ponte y Abilio Estévez (Alea: Estudos Neolatinos, v. 15, p. 41-57, 2013).
resgatam poeticamente uma memória individual e coletiva que adquirem uma
identidade única.
No caso de escritores deslocados, como Abilio Estévez, é possível identificar
traços em sua produção ficcional expressivos de uma poética do deslocamento. É
possível também que o distanciamento no espaço, juntamente com o distanciamento
temporal, gere formas muito originais de assumir o trabalho da memória num
contexto híbrido de enunciação. Neste sentido,
Inventario secreto de La Habana
(2004) pode ser expressivo desses problemas e o estudo de sua singularidade
estética ajudaria a uma caracterização da poética escritural de Abilio Estévez,
marcada pelo deslocamento e pelo trabalho com a memória.
Para o andamento desta pesquisa, contribuíram para minha orientação
teórica os trabalhos dos referidos autores: James Clifford (1995), no que concerne à
noção de deslocamento; Stuart Hall (2005) na questão do sujeito diaspórico e das
identidades contemporâneas, Arjun Appadurai (2001) na caracterização das novas
formas de imaginação, e Palmero González (2010, 2011) no que tange às poéticas
do deslocamento na escrita contemporânea hispano-americana. Já no âmbito do
discurso da memória recorremos a Santo Agostinho (1955), Andreas Huyssen
(2000) e Abil Trigo (2003). Contribuindo para um melhor entendimento do
autobiográfico e das escritas em primeira pessoa, Philippe Lejeune (2008), Sylvia
Molloy (1996), Leonor Arfuch (2010) e José Maria Pozuelo (2013) foram as
referências fundamentais. Para outros discursos da memória como o diário, a
crônica, o inventário e as memórias, consultamos a Sheila Dias Maciel (2011),
Gervácio Batista Aranha (2009); Maria José Furió (2008); Viviane Pedroso
Domingues (2011) e José Antônio Vasconcelos (2011). Partindo desse quadro
teórico inicial, traçaremos nos parágrafos seguintes um panorama geral do cenário
teórico que alicerça a pesquisa.
Tradicionalmente concebemos a residência como a base da nossa vida
coletiva na medida em que entendemos a estabilidade, o paradeiro, a fixação, como
anseios de vida. No entanto, James Clifford inverte tal lógica e sugere que o
deslocamento também pode constituir-se como lugar: segundo o autor, podemos
viver uma residência
em viagem, em deslocamento.
Essa condição deslocada gera identidades, que Stuart Hall (2006) caracteriza
como sendo perfeitamente negociáveis – já que o próprio conceito de identidade se
vê modificado na contemporaneidade: alheia a qualquer essencialismo biológico, a
identidade diaspórica transita por novos espaços e negocia com novas culturas. Os
sujeitos deslocados possuem identidades verdadeiramente "líquidas", para lançar
mão do termo empregado por Zygmunt Bauman em
Modernidade líquida (2001).
Edward W. Said, por outra parte, considera que o mundo inteiro pode ser lido como
uma terra estrangeira. Assim sendo, conceitos fechados como "lugar de origem",
"lugar de destino" e até a própria viagem, são lugares de extraordinária relatividade.
Segundo argumenta PALMERO GONZÁLEZ (2010, 2011, 2012), essas
formas contemporâneas de deslocamento cultural podem gerar poéticas da escrita,
geralmente caraterizadas pela autora a partir da ênfase na auto-referencialidade,
com uma marcante presença do eu e o desenvolvimento de motivos como o próprio
corpo do artista, o corpo da escrita, sua tradição literária, sua língua como tema e
matéria poética; na metaficcionalidade e na criação de cronotopías imaginárias, nas
que se entrelaçam tempos e espaços múltiplos, com ênfase nas heterotopías de
cidades imaginárias. O resultado dessa escrita se reverte em obras que se
apresentam como estruturas abertas, híbridas, narradas por um sujeito também
híbrido, que inventa ficções de si e que se espelha na sua própria tradição literária e
Com a perda dos projetos utópicos nacionais e consequente decadência das
grandes narrativas, vivenciamos, segundo Andreas Huyssen (2000), uma "sedução
da memória", na qual a projeção a um passado é a saída encontrada por muitos
frente à decadência de um presente antes sólido e a ausência de perspectivas
futuras. Nesse contexto, adquirem extraordinária relevância os gêneros literários
memorialísticos, revelando-se como uma ferramenta indispensável do sujeito
deslocado que, ao lançar mão da escrita memorial acaba por duplicar sua
experiência descentrada que é escrever a partir da memória. Constitui, então, uma
escrita duplamente deslocada: no tempo (memória) e no espaço (deslocamento).
Escreve-se a partir dos fragmentos de recordações (muitas vezes uma construção
imaginada dada a impossibilidade de resgatar todas as experiências vividas e
compartilhadas) e a partir de um lugar alheio.
Abil Trigo (APUD Hollanda Cavalcanti, 2012, p.53), argumenta que a memória
no caso de sujeitos deslocados deve ser vista a partir da dupla articulação entre
passado e futuro, em tanto, Andrea O'Reilly (2007) aponta para o fato de que nas
identidades em movimento a memória não representa um simples depósito de fatos
passados. Ao contrário, existe neste resgate uma constante negociação entre o que
foi vivido, coletado, herdado, ou mesmo esquecido na imaginação diaspórica, no
momento da narração.
O que se vinha pondo em pauta de discussão até os estudos de Molloy
(1991) sobre o discurso autobiográfico na produção literária da América Latina
girava em torno da articulação de um passado a um presente através de um relato
baseado em fatos e experiências reais vividas pelo protagonista. Esta condição
acaba por enfraquecer as fronteiras entre os gêneros memória e autobiografia e este
último e a autoficção, uma vez que o que se narra é resultado do que se viveu ou do
que se gostaria de ter vivido. Além do mais, com as novas formas de figuração do eu
(Pozuelo, 2013), outros discursos da memória invadem a cena literária,
descentralizando a figura do eu, em direção ao seu entorno. O diário, a crônica, o
inventário e as memórias, por exemplo, ao se preocuparem com os fatos
circunstanciais como a caracterização do tempo e do espaço, acabam por revelar
também novas facetas do sujeito que narra.
Como objetivos gerais, essa dissertação pretende contribuir para o estudo
crítico de textos literários em deslocamento cultural, fundamentalmente para aqueles
em que o discurso memorial é dominante. Além disso, pretende abrir possibilidades
de análise, integração e comparação de textos literários relevantes no domínio da
cultura artística da contemporaneidade, contribuindo para um olhar mais orgânico da
literatura em condições de deslocamento. Já os objetivos específicos consistem em
analisar um
corpus narrativo literário pertencente ao universo criativo de Abilio
Estévez nas suas coordenadas temáticas, compositivas e comunicativas; integrar a
análise do texto ao exercício interpretativo; e proceder ao estudo de caracterização
da obra
Inventario secreto de La Habana, particularmente no que concerne às
poéticas da memória nas escritas em deslocamento e às singularidades discursivas
dessa escrita memorial. No referido ao trabalho com o texto artístico, procederemos
com instrumentos de análise textual e hermenêutica literária, articulando o estudo
dos procedimentos narrativos com suas implicações ideológico-discursivas.
Quanto à estrutura do trabalho que aqui se apresenta, busco uma
organização dos conteúdos de maneira crescente, articulando gradativamente os
problemas gerais que alicerçam a pesquisa aos problemas específicos: a obra em
deslocamento cultural de Abilio Estévez, a memória deslocada em
Inventario
Secreto de La Habana e as variadas formas discursivas que assume o tema da
memória nesse
corpus.
No primeiro capítulo, intitulado "Deslocamento cultural e as poéticas do
deslocamento", lanço as bases da minha pesquisa. Desse conceito chave se
desdobrarão novas discussões teóricas que posteriormente guiarão nosso estudo.
Particularizo, ainda, nesse capitulo numa praxe artística concreta, o deslocamento
na obra de Abilio Estévez.
No segundo capítulo – "A memória em deslocamento –
Inventario secreto de
La Habana", é discutida a fortuna crítica norteadora desse trabalho, no referido à
memória e, especificamente, à memória em deslocamento, para finalmente, aceder
a uma hermenêutica da memória em
Inventario secreto de La Habana.
Compondo o terceiro capítulo, aproveitando o estudo da memória
supracitado, busco sua aproximação aos discursos memorialísticos no texto literário,
com seus desdobramentos nos discursos autobiográfico, das memórias, do
inventário, do diário e da crônica, para então
correlacionar esse trabalho com a já
evidenciada poética do deslocamento.
I - DESLOCAMENTO CULTURAL E AS POÉTICAS DO DESLOCAMENTO
Sur o no Sur
To beast or not to beast, that is the hueso.
(Sarampión Mamá, que esto es contagioso!)
Me voy porque acá no se puede,
me vuelvo porque allá tampoco
Me voy porque aquí se me debe,
me vuelvo porque allá están locos
Me voy porque aquí no me alcanza,
me vuelvo porque no hay esperanza
Me voy porque aquí se aprovechan,
me vuelvo porque allá me echan
(Disculpe, la embajada de Italia?)
No sé por qué pasa lo que me pasa,
quizás sea la vejez
Quisiera quedarme aquí en mi casa,
pero ya no sé cuál es
No sé por qué pasa lo que me pasa, quizás sea mi niñez
Quisiera quedarme aquí en mi casa, pero ya no sé cuál es.
(Me voy para la embajada, me vuelvo por no estar visada
Me voy porque soy de por acá, me vuelvo por ser un sudaca
Malaya, qué triste destino, ser o no ser un Argelino
Malaya, qué triste destino, ser o no ser un marraschino.)
3
Trad.: Sul ou não Sul – Letra e música de Kevin Johansen
Ser bestial ou não ser bestial, este é o osso./(Sarampo, Mamãe, que isto é contagioso!) Vou porque aqui não se pode, /volto porque lá também não/ Vou porque aqui me devem/ volto porque lá estão loucos/ Sul ou não sul./ Vou porque aqui não me basta,/ volto porque não há esperança/ Vou porque aqui se aproveitam/ volto porque lá sentem falta de mim/ Sul ou não sul./(Desculpe,a Embaixada da Itália?)/ Não sei por que acontece o que me acontece/ talvez seja a velhice/ Eu queria ficar aqui em minha casa/ mas já não sei qual é/Sul./ (Ao porto!)/ Não sei por que acontece o que me acontece, talvez seja minha infantilidade/ Eu queria ficar aqui em minha casa, mas já não sei qual é./ (Vou para a Embaixada, volto por não estar com visto)/ Vou porque sou de cá, volto por ser um sudaca [sulamericano]/ Malaya, que triste destino, ser ou não ser um argelino/ Malaya, que triste destino, ser ou não ser um marroquino.)/ Sul ou não sul.
1.1 Os deslocamentos na contemporaneidade: a nova imaginação em
movimento
Na perspectiva transnacional em que estamos inseridos, estudar a questão
identitária se vê cada vez mais subjugada às noções de deslocalização e
relocalização. Conforme argumenta James Clifford em seu livro
Dilemas de la
cultura. Antropología, literatura y arte em la perspectiva posmoderna (1995) um
marco referencial para antropologia moderna, estudar hoje identidades significa
abolir a defasada visão da cultura e das tradições culturais como elementos
contínuos e homogêneos, arraigados em uma nação. Segundo Stuart Hall, "a cultura
não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar" (HALL, 2005, p. 13). Na
literatura isto significa estar aberto para que infinitas identidades "venham a ser", se
realizem, na medida em que são textualizadas, e que da sua co-existência e da sua
confrontação surjam novas formas identitárias, da fecundação e da proliferação.
A noção de identidades nacionais, neste sentido, se torna alvo de
questionamentos, já que ela não constitui mais a única forma de identidade possível.
Isto é, quanto mais a vida social é regida pelos meios de comunicação, pelas
imagens e mercados globais, mais as identidades deixam de ser lidas como
pertencentes a um determinado tempo, espaço, e história específicos ou como algo
biológico, nato, e passam a ser ativadas, interpretadas e atualizadas a cada novo
Néstor García Canclini (2011), entendendo essa condição "flutuante" das
identidades, lança mão do conceito "hibridismo" para a caracterização das culturas
vigentes no século XXI. As tradicionais oposições subalterno/ hegemônico, culto/
popular, tradicional/ moderno já não se sustentam em meio às novas formas de
organizações de classe, etnias e nações, frente às manifestações que surgem na
fronteira, no
entre-lugar, na margem e por que não, no deslocamento?
De acordo com Benedict Anderson (2008), mais que uma noção abstrata, a
nação é um relato construído, inventado. No caso de
Inventario secreto de La
Habana, por exemplo, a nação parece estar nas citações literárias, na singular
lembrança de amigos e figuras da vida cultural da Havana, nos pequenos relatos do
bairro, na rememoração de uma praça, de um beco, de uma ruela, também na
observação pessoal da maneira de falar, de andar ou de esperar dos homens e
mulheres que habitam a cidade.
Dois processos contribuíram, de acordo com Stuart Hall (2006), para este
recente cenário cultural: a globalização e os movimentos migratórios; ambos
rompendo com a noção de cultura homogênea ao aproximar realidades díspares e
promover o constante diálogo e contato a través de fronteiras cada vez mais
negociáveis e porosas. A combinação destes dois elementos, de acordo com Arjun
Appadurai (2001), leva a pensar em novas formas da subjetividade e da imaginação:
desterritorializados. [.] En suma, los medios electrónicos y las migraciones masivas caracterizan el mundo de hoy, no en tanto nuevas fuerzas tecnológicas sino como fuerzas que parecen instigar (y a veces obligar), al trabajo de la imaginación.4
O trabalho da imaginação, neste sentido, é imprescindível: "Nações são
imaginadas, mas não é fácil imaginar. Não se imagina no vazio ou com base no
nada" (SCHWARCS, 2008, p. 16).
4 Trad.: "[.] imagens em movimento se encontrando com espectadores desterritorializados. [.] Em resumo, os meios eletrônicos e as migrações massivas caracterizam o mundo de hoje, não tanto em relação às novas forças tecnológicas mas sim como forças que parecem instigar (e as vezes obrigar) o exercício da imaginação.
Distingo, com Appadurai (2001, pgs. 8-9), três caraterísticas que definem
nossa imaginação em tempos de "modernidade desbordada". A primeira delas diz
respeito a uma autonomia da imaginação: "[.] actualmente, la imaginación se
desprendió del espacio expresivo proprio del arte, el mito y el ritual, y pasó a formar
parte del trabajo mental cotidiano de la gente común y corriente."5. Antes atrelada ao
campo mítico e ritualístico, imaginar era um esforço de criação daqueles que se
empenhavam ao campo artístico de produção; hoje se torna um espaço mais
abrangente e democrático, deixando de ser uma atividade privativa dos artistas. A
segunda mudança de perspectiva gira em torno da relação entre imaginação e
realidade: "la fantasía se puede disipar, pero la imaginación, cuando es colectiva,
puede ser el combustible para la acción. [.] Actualmente la imaginación es un
escenario para la acción, no sólo para escapar.6 O caráter passivo, contemplativo e
de deleite da imaginação individual cede lugar à uma imaginação ativa, capaz de
interromper a inércia social, se pensamos em sua força coletiva. O sentido individual
e coletivo da imaginação, por fim, é a terceira caracterização dessa nova ordem
imaginativa: o exercício de imaginar hoje, pode ser feito por qualquer pessoa, sem
que se questione nem a sua autenticidade nem a sua autoridade para fazê-lo,
cobrando novos significados no âmbito da interação coletiva (nas redes sociais, no
ciberespaço, etc.)
Daí que imaginar desde a ilha não é o mesmo que imaginar a partir da
distância. Livre da dominação do olhar alheio, o sujeito deslocado imagina, recria,
fabula por meio de uma visão que deixou de ser focada para registrar mais
5 Trad.: Atualmente a imaginação se desprendeu do espaço expressivo próprio da arte, o mito e o ritual, e passou a fazer parte do trabalho mental e cotidiano das pessoas comuns e correntes.
6 Trad.: A fantasia se pode dissipar, mas a imaginação, quando é coletiva, pode ser o combustível para a ação. [.] Atualmente a imaginação é um cenário para a ação, não só para escapar.
amplamente o que a proximidade impede que se enxergue. Há um intercâmbio de
olhares: do focal ao multifocal ou periférico e o efeito resultante dessa prática é
textualmente evidenciado, como veremos mais à frente. A iluminação textual dos
pequenos relatos conformadores da cidade passa a exercer protagonismo, não um
protagonismo cego, à custa da exploração cultural e rebaixamento do lugar do
"outro". Ocorre aqui uma fusão, comum ao espaço binário e paradigmático da
fronteira, ou o espaço "bifrontal", como prefere denominar Clifford (1995). Pensar o
espaço físico da fronteira, na visão do autor, possibilita um duplo olhar interpretativo.
Desde a ótica contemporânea de mobilidade, as fronteiras podem ser tanto espaços
tradicionais de fixação, que delimitam territórios, limites intransponíveis, quanto
espaços móveis, reajustáveis ao meio, realizações mentais de construção de
Segundo Appadurai, também a mobilidade, paralelamente à fixação, pode
ser lida como um
lócus de enunciação, sem que isso represente uma identificação
pela perda (como nos remete a palavra exílio, por exemplo). É natural que
associemos a viagem à instabilidade, ao desapego e à ausência. Quando viajamos
estamos certamente deixando "algo" ou "alguém", estamos abandonando nossas
rotinas diárias, o conhecido e confortável, mas também estamos ampliando nosso
acervo cultural, ampliando nossos horizontes. Nessa dialética, a viagem, para o
autor, pode ser também residência. Segundo Clifford (1995) podemos viver a
experiência do deslocamento como uma residência em viagem. Desde essa ótica
descentrada, a lógica se inverte e as noções antes antônimas agora se
complementam. Na mesma linha de argumentação, James Clifford também afirma:
[.] ya no se pueden formular teorias desde
lugares sino desde
itinerarios; entonces la pregunta que debe realizarse a un enunciado no es más desde donde se produce sino entre donde o betweeness: "Not so much "Where are you from?" as "Where are youbetween?". Esse "entre donde" es el lugar de enunciación característico de estos sujetos.7 (CLIFFORD, 1997. APUD Colombi, 2004, p.24)
No contexto da diáspora cubana contemporânea, a discussão que se vem
articulando, principalmente a partir dos anos 80, é reveladora de uma variada gama
tipológica de deslocamentos, com predomínio dos conceitos de exílio e diáspora
para caracterizar a migração da Cuba de hoje. Para alguns autores, como Eliana
Rivero (2005), a palavra "exílio" já não consegue abarcar a realidade em movimento
cubana, nem consegue expressar a ideia de Cuba como transnação, além de
representar um impacto muito duro, com uma carga sentimental apelativa ao definir
do ponto de vista da perda. Um "exilado" é um sujeito sem terra natal, sem o direito
ao retorno, sem identidade. A sua experiência de "exilada", principalmente no
contexto pós-revolucionário cubano, lhe atribuía "matices individuales de fugitiva,
apátrida, sin solares y sin fueros, eternamente victimizada.8" (RIVERO, 2005, p.19)
O reclamo de Eliana Rivero tem a ver com uma prática, não exclusiva da
crítica cubana, de identificar diáspora com exílio e ainda de discutir o exílio pela
questão do pertencimento ou não pertencimento a um território, a uma nação.
Isto posto, pensar a diáspora cubana na contemporaneidade exige uma
mudança progressiva de perspectiva e consequente ativação de novos conceitos
para definir os renovados processos que se instauram. Enquanto o sujeito exilado é
7 Trad.: [.] já não é possível formular teorias desde lugares, mas sim desde itinerários; então a pergunta que deve ser feita a um enunciado não é mais
desde onde se produz e sim
entre ondeou no intervalo: "Não tanto de onde você é?" Mas sim "Você está entre onde?". Esse "entre onde" é p lugar de enunciação característico destes sujeitos. 8 Trad.: "matizes individuais de fugitiva, apátrida, sem teto e sem jurisdição, eternamente vitimizada."
dominado pelo desejo de retorno à terra de origem, o sujeito diaspórico responde a
outra lógica – cosmopolita, comunitária e imaginária- de habitar o mundo.
Rafael Rojas (2013) não vê uma relação excludente entre os conceitos de
exílio e diáspora: "El exílio cubano siempre fue diaspórico" (ROJAS, 2013, P.137),
fazendo alusão a uma subjetividade nômade, que implica uma ótica desde o
descentramento e a multiplicação territorial por meio da errância. Para o crítico e
historiador cubano "diáspora" e "exílio" definem, mais bem, dois momentos da
emigração cubana pós-revolucionária. Até meados dos anos 80 as primeiras ondas
de emigrantes cubanos se dirigiram fundamentalmente para os Estados Unidos,
onde inauguraram uma verdadeira "política do exílio" ativamente combativa. Mas, a
partir dessa data, começou outro tipo de migração, a de quem vai para cidades
latino-americanas ou europeias com a ideia de voltar. Esse grupo, principalmente
profissionais, vive a sua migração não como uma separação radical. Para Rojas a
diferença real entre aqueles que se consideram exilados e os que se reconhecem na
diáspora reside na visão do retorno. O exilado pensa a repatriação como um retorno
final que lhe devolverá à nação perdida. O diaspórico pensa em um repatriamento
reversível, intermitente, mais em sintonia com a era pós-nacional.
O caso de Abilio Estévez, sem desconhecer sua visão profundamente crítica
do sistema político atual da ilha, se inscreve numa clara dimensão diaspórica. Trata-
se do caso, comum na Latino América, do escritor que procura a proximidade com
os eixos editoriais europeus, como forma de consolidação de uma carreira.
Um dos problemas discutidos em torno à questão diaspórica, é a relação
entre língua e literatura. No caso cubano, constitui todo um subsistema literário a
produção dos cubano-americanos, sujeitos biculturais que adotaram a língua inglesa
como língua literária. Refiro-me, por exemplo, a Gustavo Pérez Firmat, que desde os
Estados Unidos tece sua narrativa cubana, com obras já consagradas pela crítica
como
El año que viene estamos en Cuba (1997) e
Cincuenta lecciones de exílio y
desexilio (2000).
Apesar de não existir um confronto extremo entre línguas, no caso de Abilio
Estévez, a questão linguística não deixa de ser conflituosa. Ainda que considerado
um autor cosmopolita, que escreve somente em espanhol e que seu público é
fundamentalmente hispano, no eixo América- Europa, não é possível desatender o
fato de que, impelido pelas exigências mercadológicas e editoriais, precisa negociar
sua escritura no âmbito do chamado espanhol neutro. O resultado dessa negociação
reclama um tratamento diferente.
Entendendo que tal cenário já não consegue mais sustentar identidades,
narrativas, produções culturais de sujeitos como o autor aqui estudado, chego
assim, ao coração pulsante desta pesquisa: o deslocamento.
O termo, amplamente discutido pela professora e pesquisadora cubana Elena
Palmero González, faz referência de maneira mais abrangente a uma gama de
definições: "[.] diferentes formas de mobilidade, física, espiritual, linguística; [.]
diversas práticas de emigração, exílio, diásporas, êxodos, nomadismos, circulações
humanas." (2010, p.109). Esse caleidoscópio permite transitar entre os diversos
sentidos que a palavra nos remete. Ora lidamos com deslocamentos físicos, que a
sua vez podem se desdobrar em uma subjetividade deslocada; ora se concretizam
com nuances do exílio ou carregam consigo o eco de discursos culturais. Todos os
sentidos, no entanto, de alguma forma deixam entrever as marcas de um eterno
"devaneio" no mundo, aspecto bem ressaltado por Palmero González (2012): "O
deslocamento é, assim, assimilado nesses textos como estado natural, como
exercício sem fim, consubstancial ao humano." (p.66) Diante da abrangência do
conceito, adoto nesta pesquisa o conceito de deslocamento, ao invés da diáspora,
para referir não somente ao deslocamento físico ou geográfico do autor, mas
também seu deslocamento enunciativo e seu modo de escrever, que em muito
contribui para uma caraterização de uma poética.
Visto o deslocamento como prática intrínseca da experiência humana,
precisaremos reeducar nossa visão para dialogar e conviver com essa realidade. É
certo, como explica Bauman, que:
Estar total ou parcialmente "deslocado" em toda parte, não estar totalmente em lugar algum [.] pode ser uma experiência desconfortável, por vezes perturbadora. Sempre há diferenças a serem atenuadas ou desculpadas ou, pelo contrário, ressaltadas e tornadas mais claras. As "identidades" flutuam no ar, algumas de nossa própria escolha, mas outras infladas e lançadas pelas pessoas em nossa volta [.]. Há uma ampla probabilidade de desentendimento, e o resultado da negociação permanece eternamente pendente. (BAUMAN. 2005, P.19)
Bauman (2005) enfatiza o lado de desconforto que qualquer deslocamento
gera, mas é importante apontar também que este abre um leque de opções de
vivências, dentre as quais o desconforto é apenas uma – e não a mais importante-
das sensações. Nesse sentido, em sua tese de doutorado, Giane da Silva Mariana
Lessa (2012, p.132) complementa:
Por outro lado, os deslocamentos implicam a reflexão sobre como se dá a constante negociação discursiva e identitária, exigindo também a descrição e compreensão dos conflitos de índoles diversas, mas também a identificação do produto resultante do deslocamento, da produção de conhecimento e de novas formas de ser e estar no mundo.
Silvia Rosman (APUD Palmero González, 2010), fugindo das noções
essencialistas de cultura, identidade, língua e literatura nacional, afirma que:
[.] não abandonamos ainda o hábito de localizar o lugar e o agente da deslocação; que continuamos buscando "uma identidade" ao ler textos literários, agora adjetivada como híbrida, multicultural ou plural; e que não
perdemos o costume de querer inscrever as obras em uma "comunidade literária". (p. 114)
A necessidade de se olhar desde a perspectiva da singularidade é reveladora. Em
algum sentido minha pesquisa se identifica com essa proposta, ao fazer uma leitura
da obra Estevéz focada na singularidade de sua praxe criativa. No tópico que segue,
tento caracterizar a escrita de Abilio Estévez, marcada desde sempre pelo
1.2. A escrita em deslocamento de Abilio Estévez: Inventario secreto de La
Habana
Pensar o conjunto da obra narrativa de Abilio Estévez é transportar-se,
invariavelmente, a outro território, é evadir-se através do jogo entre imaginação e
realidade, é movimentar-se por meio das tessituras de seu texto, é alcançar e
afastar-se paradoxalmente do vivido e do inventado, colecionando lugares, pessoas
e histórias. A original dinâmica que rege sua escrita está pautada, sobretudo, no
deslocamento, na viagem, no trânsito e em elementos que, devido a sua
sistematicidade e recorrência nos levam e perceber a presença de uma cronotopia
imaginária perpassando toda a sua escrita. Refiro-me aos limites imprecisos, entre
realidade e imaginação, memória e esquecimento, passado e presente, terra natal e
terra de acolhida, mobilidade e fixação. À medida que cruzamos esses tópicos nos
confrontamos com a força criativa de um autor deslocado que torna a própria escrita
um elemento poético. Cabe aqui um breve resumo de sua produção artística a fim
de observar o conjunto de sua obra.
Em seu mais recente romance
, El año del Calipso (2012) é narrado o
despertar para a sexualidade de um jovem protagonista de quinze anos. Em sua
iniciação o jovem experimenta novas sensações, descobre o próprio corpo, o valor
do erotismo e desabrocha naquele inesquecível ano que foi embalado ao ritmo do
calipso de uma Cuba sempre quente.
El bailarín ruso de Montecarlo (2010) conta a saga de Constantino
Augusto de Moreas, protagonista da narrativa, que viaja a Zaragoza para apresentar
seu trabalho de pesquisa, depois de uma vida inteira vivida em Cuba, investigando a
vida e obra do poeta José Martí. Já em território europeu decide pegar um trem com
destino a Barcelona, a cidade que tanto sonhava em conhecer para dar asas à
realização de seus desejos, vontades recalcadas, amores reprimidos. Longe de
Havana, entretanto, descobre uma dura realidade, acompanhado de uma imagem
fantasmagórica que sempre aparece em suas lembranças. Trata-se do velho amigo
bailarino clássico que um dia prometera que iriam dançar juntos na famosa
companhía
Ballets rusos de Montecarlo.
El navegante dormido (2008) se situa nos dias que sucederam ao temível
furação que se aproximava da costa cubana, em outubro de 77, quando um grupo
de personagens de várias gerações convive num abandonado bangalô. Enquanto
esperam que algo terrível ou benéfico ocorra, suas vidas narram um passado de
segredos à espera de serem revelados com a passagem do furacão. Despertar esse
passado assombroso é tarefa da jovem Valéria que desde Nova Iorque reconstroi
sua vida deixada para trás, ao reviver também seu primo que decidiu fugir num bote
da ilha, depois da tempestade
.
O romance
Los palacios distantes (2002) conta a história de Victorio, um
gay, solteiro, beirando os cinquenta anos que acorda com a notícia de que o antigo
palácio onde ele tem um pequeno apartamento alugado está prestes a ser demolido.
Ele decide então abandonar o lugar, deixando para trás também emprego e toda a
vida que levava até então e começa uma trajetória sem rumo pelas ruas e espaços
abandonados de Havana, perdendo-se nas reminiscências de sua infância, nas
recordações dos tempos de ouro daquela cidade outrora esplendorosa, de palácios
luxuosos e pessoas ilustres.
Com uma toponímia que nos remete ao "reino" da imaginação, em
Tuyo es
el reino (1998) penetramos num universo mediado pelo olhar de uma família à
espera de um acontecimento extraordinário em suas vidas. Em
La Isla, localizada a
pouca distância de Havana, os membros dessa família (que vivem em "
Más Acá")
resgatam um passado cheio de labirintos e a grande expectativa da chegada de um
"ser supremo" que vem de "
Más Allá" os consome.
Como se percebe, de uma forma ou de outra, o leitor de Abilio Estévez é
sempre remetido à Havana, nos seus mais variados contextos históricos que
iluminam em cada uma das obras um tópico específico do imaginário do autor, do
imaginário da ilha.
O
corpus desta pesquisa, a obra
Inventario secreto de La Habana, está
composto de seis capítulos, um epílogo e um colofão. No primeiro capítulo, intitulado
En un café de El Molinar, o narrador se encontra em Palma de Mallorca e começa a
resgatar poeticamente a outra ilha, a Havana, o seu mar tenebroso, a contemplação
a partir da distância, dados históricos, relatos de personagens do seu convívio,
tradições culturais, o medo, a fronteira, os mitos, uma gama de autores e poetas que
tematizaram a cidade. O início de um longo inventário começa a ser traçado neste
capítulo. No capítulo II-
Largo muro junto al mar, o narrador se debruça sobre alguns
espaços conformadores de imaginários da cidade, no período da sua adolescência.
O Malecón e o mar, espaços geradores de subjetividades. O sentido da experiência
do sexo em grupo, os momentos de lazer entre amigos e família ao ar livre nas
noites calorentas ao longo do muro. A espera, a resignação, a referência histórica
aos
balseros. A degradação física desses espaços feita pelo salitre. "Un largo muro
junto al mar. Un lugar para sentarse y definir posiciones […] descubrir dos modos de
sentarse en él: de frente al mar o de frente a la ciudad."9 (p.67) Definir destinos:
partir ou ficar, a travessia ou a estagnação. Em
Un sueño de la infancia, terceiro
capítulo da narrativa, o personagem-narrador recorre às suas memórias de infância
no bairro Hornos para demonstrar a sensibilidade que tinha desde sempre para "las
afueras", a sua já conhecida sensação de estranhamento: "Desde que tuve uso de la
razón, como suele decirse, La Habana fue para mi um espacio distante, un territorio
que de algún modo no me pertenecía, un sitio de donde venía y adonde iba, pero en
el que no estaba, un lugar que debía ser alcanzado, merecido o hasta conquistado"10
(p.88). Na sequência, em
El estanque del joyero japonés, o narrador
traz à tona as
histórias de ilustres e anônimos da cidade com uma riqueza de detalhes tal que
somente a imaginação do autor justifica o trabalho exaustivo da memória. Como
imagens congeladas em sua memória, o narrador redescobre personagens de sua
juventude, momentos de uma estadia feliz: "Parece idílico, lo sé. En toda vida,
supongo, habrá algún momento perfectamente idílico."11 (p.166)
Inventario secreto
(Advertencias para descubrir una ciudad) é o capítulo que o autor dedica mais
páginas. Nele é feito uma desconstrução do olhar turístico, do senso comum, que se
lança sobre Cuba, suas tradições e hábitos. A proliferação de incontáveis histórias
num resgate de uma cubanidade adormecida nas memórias do narrador-
9 Trad.: Um amplo muro junto ao mar. Um lugar para se sentar e definir posições. [.] Descobrir dois modos de se sentar nele.
10 Trad.: Desde que fiz uso da razão, como se costuma dizer, Havana foi para mim um espaço distante, um território que de algum modo não me pertencia, um lugar de onde se vinha e aonde se ia, mas no qual não se estava, um lugar que deveria ser alcançado, merecido ou ainda conquistado.
11 Trad.: Parece idílico, eu sei. Em toda vida, suponho, haverá um momento perfeitamente idílico.
personagem. No sexto capítulo-
De madrugada, en la calle Valencia, vemos o
despertar de um sonho. O narrador volta a se relocalizar em Barcelona: "Entre el
sueño de mi paseo errante por La Habana y el despertar con la visión de las torres
de La Sagrada Familia, algo notable, supuse, había ocurrido."12 (p.292) No epílogo
da obra, "
El trompetista de Stuttgart", por fim, o narrador problematiza o
pertencimento a uma nação, ao questionar seu lugar de origem e a impossibilidade
de habitar somente um espaço. O colofão é a suposta voz narrativa de um autor,
que se declara Abilio Estévez, que dedica as últimas páginas em nome daqueles
que o acompanharam nesse percurso.
Transpassando toda a narrativa central de primeiro plano, inúmeras
referências vão sendo intercaladas à maneira de metatextos dispersos ao longo do
texto. Assim, entram na narrativa, toda espécie de citações: literárias, poéticas,
artísticas, históricas, que pensadas do ponto de vista significativo funcionam como
testemunhos do esplendor outrora vividos em Cuba ou denunciam o abandono de
um povo fadado à esperar.
Essas narrativas intercaladas, a modo de
collage, são organizadas
cronologicamente num período histórico que vai de 1800 a 2002, resgatando a voz
de poetas e escritores como Alejandro de Humboldt, Cirilo Villaverde, Miguel de
Carrión, Severo Sarduy, Alejo Carpentier, María Zambrano, Guillermo Cabrera
Infante, Reinaldo Arenas, Antonio José Ponte, Leonardo Padura Fuentes, além dos
referentes diretos, com quem Abilio Estévez manteve amizade, José Lezama Lima e
Virgilio Piñera.
12 Trad.: Entre o sonho do meu passeio errante por Havana e o acordar com a vista das torres da Sagrada Familia, algo notável, supus, havia ocorrido.
Esses metatextos, resemantizados na narrativa de Estévez, dão ao livro uma
aparência de rede hipertextual. Sua funcionalidade se concretiza na interação
dialógica com o texto que está sendo narrado pelo autor, ora complementando-o,
ora contradizendo-o, potencializando um fundo lúdico, irônico, por vezes
questionador. Referências que, como as ondas do mar, quebram o seu ritmo natural,
mas nem por isso deixam de fazer parte dele. Recordações que assaltam
voluptuosamente e se juntam ao presente, como se dele fizesse parte, no entanto, o
próprio formato que o autor as apresenta denuncia a sua irremediável condição
estrangeira. Existe algo que se perdeu entre o tempo e a distância transcorridos, que
talvez somente a escrita possa recuperar.
A estruturação da narrativa se apresenta como uma "colcha de retalhos", uma
aparente fragmentação desconexa do todo que ao invés de tentar abarcar "A"
história cubana, faz emergir múltiplas histórias, desde os mais variados
enunciadores. "As mãos" que bordam a colcha são as mãos de colonizadores e
colonizados, personagens emblemáticos e anônimos, sujeitos reais e imaginários,
narrador e personagem, figuras que à sua maneira narram a "nação", enquanto
estão sendo também a nação narrada. Ao final, todos os discursos se juntam numa
mesma base que os validam como um só. O "inventário" dá conta dessa coleção de
relatos, mas ao mesmo tempo é "secreto" dado que é único e singular. Numa colcha
de retalhos as combinações que se podem fazer são infinitas (o que torna a arte final
única). Enquanto os retalhos vão sendo emendados, novos sujeitos e novos
discursos estão sendo recriados. O resultado de tal mescla só fará sentido se
alguém der um sentido a ele. É na interação que a negociação de sentido acontece.
Além disso, ao lançar mão de um leque variadíssimo de fontes, o autor não se limita
a narrar um local ou uma temporalidade, potencializando então, sua força criativa.
Cuba deixa de ser a nação dos livros, das enciclopédias, da mídia, para tornar-se
uma Cuba imaginada.
O livro traz as memórias de um sujeito-narrador, ora personagem, ora
autor das memórias que estamos lendo, que captura um passado motivado pelo
presente que o rodeia. Quando menos espera, as imagens, os sons, todas as
sensações o penetram, deixando aflorar as recordações de um tempo e um lugar
distante do agora em que se escreve. Esse retorno ao passado, entretanto, não o
amedronta e como num sonho, a dimensão da temporalidade se esvai, as ações
cotidianas de pessoas comuns ganham movimento, a paisagem aporta cores, o
clima resgata a vivacidade de outrora. Como num quadro costumbrista, o narrador
começa a pintar uma manhã chuvosa em Palma de Mallorca que- por ironia do
destino?- também é uma ilha. Elementos como o mar, as horas pesarosas, o
passear despropositado, são o motivo inicial responsável por transportá-lo de uma
ilha à outra e de repente aquele café onde se encontra poderia estar em qualquer
outro canto do mundo, pois o espaço e tempo presentes são apenas suportes físicos
responsáveis por penetrar nesse mundo convidativo, que tanto narrador quanto leitor
anseia descobrir.
A própria criação literária constitui outro motivo no livro, elaborando-se todo
um sistema metapoético marcado pelo o que Fernanda Bustamante (2010) chamou
de "a retórica da redundância e da saturação", onde o plano de fundo é o conflito
que surge entre narrar o que é tipicamente cubano e o rechaço deste por meio de
um verdadeiro barroquismo literário, resultado da própria saturação dos espaços e
das ruínas que podem ser iluminadas desde a arquitetura barroca da cidade
Ao contrário das cidades pós-modernas que tendem a dividir brutalmente
seus espaços entre edifícios, zonas, bairros e condomínios fechados, com linhas e
fronteiras bem demarcadas, a questão da ocupação e utilização do espaço em
Havana possui outro modo de leitura. Como bem descreve Josefina Ludmer em
Aquí América Latina – Una especulación:
Las ciudades latinoamericanas de la literatura son territorios de extrañeza y vértigo con cartografias y trayectos que narran zonas, líneas y limites, entre fragmentos y ruínas. El nombre de la ciudad puede llegar a vaciarse (como pueden vaciarse la narración o los sujetos de las ficciones) y desaparecer, y entonces el trayecto, el cruce de las fronteras y el vértigo son los de cualquier ciudad o los de "una ciudad"13
Em Havana a única linha fronteiriça é a que divide o mar. Em terra firme os
territórios são super saturados, as janelas e portas abertas que dão para a rua
borram a fronteira entre o público e o privado e revelam o que habitualmente não se
vê. As construções degradadas, carcomidas pelo tempo, pelo salitre e pelo sol
escaldante, desconstroem noções como dentro/fora, claro/ escuro, velho/novo. A
realidade se nota plana, monocromática, enquanto os territórios constroem
subjetividades para além da superfície.
O tópico da espera em Cuba assume diferentes projeções. Uma delas condiz
a uma espécie de submissão ao destino, a predestinação à aceitação pacífica das
dores e percalços da vida, como podemos entrever no fragmento do poema de
Gabriel de la Concepción Valdés (Plácido), poeta romântico cubano a quem Abilio
faz referência:
13 Trad.: As cidades latino-americanas da literatura são territórios de estranhamento e vertigem com cartografias e trajetos que narram zonas, linhas e limites, entre fragmentos e ruínas. O nome da cidade pode chegar a esvaziar-se (como podem se esvaziar a narração ou os sujeitos das ficções) e desaparecer, e então o trajeto, o cruzamento das fronteiras e a vertigem são os de qualquer lugar ou os de "uma cidade". (P.130)
Jamás murmura de su suerte aleve, Ni se lamenta del sol que la fascina, Ni la cruda intemperie la extermina, Ni la furiosa tempestad la mueve.14 (p. 66)
Para todo e qualquer contratempo, "o que se pode fazer?" Se a luz acaba, por
exemplo, não resta outra saída senão esperar que o apagão seja breve. Para
justificar a espera: "
No cojas lucha": Se falta ovo, pão, feijão, água, roupa, dinheiro.
‘
No cojas lucha'. "O sea, tranquilízate, reanímate, llénate de paciencia que la
solución queda fuera de tus manos. Nada se puede hacer, así que, relájate, chico,
‘no cojas lucha'" 15 (p.75)
A espera, entretanto, corre o risco de ser acompanhada pelo esquecimento.
Anulando as vontades, calando os desejos, inevitavelmente se anula também o
sujeito: "Es inevitable que la espera llegue acompañada por el olvido, otro demonio
atroz."16 (p.81). Para que não se esqueçam, também os monumentos preenchem
uma ausência: Abilio Estévez, lendo de longe a cidade, escreve sobre o mito da
espera presente na estátua de La Giraldilla. A lenda conta como Isabel de Bobadilla
terminou o resto de seus dias na torre do Castelo da Força, esperando o regresso
de seu esposo que havia partido pela conquista de La Florida. "O sea, que no sólo
Isabel, sino toda la población esperaba."17 (p.81). A espera em Havana, portanto, se
justifica por diferentes motivos: espera-se por resignação, por inércia, por
contemplação, por indiferença ou por amor, mas a passagem do tempo em todos os
casos é implacável.
14 Trad.: Jamais maldiz o seu destino traiçoeiro, / Não se lamenta pelo sol que a fascina / Nem a crua intempérie a extermina, / Nem a furiosa tempestade a move.
15 Trad.: Ou seja, se tranquiliza, ânimo, se encha de paciência que a solução está fora do seu alcance. Nada se pode fazer, então, relaxa rapaz, <<não procure lutar>>.
16 Trad.: É inevitável que a espera chegue acompanhada pelo esquecimento, outro demônio atroz.
17 Trad.: Ou seja, que não só Isabel como toda a população esperaba.
"O tempo está suspenso em Havana" (2011), disseram Silvia e Heitor Reali,
correspondentes da cidade, autores do texto "Para onde vai Cuba?", publicado na
sessão de
viagem da
Revista Planeta. Exatamente esse tempo busca-se capturar na
obra: o tempo esquecido, flutuante, desconhecido porque impermeável até então.
No inicio de I
nventario secreto de La Habana o narrador nos fala: "<<paseaba>> [.]
como si el tiempo no existiera y fuera realmente el dueño de mis actos."18(p 17).
Desde o princípio do livro nos sensibilizamos rapidamente ao plano onírico proposto
pela narração. Como num sonho, a dimensão da temporalidade se esvai e o vazio
deixado também pela distância entre narração e objeto narrado é preenchido pela
imaginação. A obstinação de alcançar uma cidade inalcançável dá lugar a essa
imaginação, que é afinal o único território conhecido e revisitado do poeta:
En aquellos años, como en estos, como siempre, prefería las respuestas de la imaginación, por horribles que fueran, que toda la precaria verdad, las dudosas razones de la lógica. Al final, la realidad siempre es peor.19 (p. 61)
Quando Abilio Estévez sai da ilha carrega consigo o olhar mediado e o
contrapõe ao olhar inventado e imaginado. Do confronto nasce sua singular
narrativa. O confronto ao qual me refiro não se trata de um discurso marcado de
protestos, reivindicativo, permeado de queixas ou mágoas do lugar que ficou para
trás, apesar de deixar entrever uma dose destes elementos, não é seu objetivo
exaltá-los. A ironia e a crítica fina são a linha que tece seu discurso. O que narra é
resultado dessa mistura de olhares que ainda é entrecruzado pelo deslocamento e
18 Trad.: Passeava [.] como se o tempo não existisse e eu fosse realmente o dono dos meus atos.
19 Trad.: Naqueles anos, como nesses, como sempre, preferia as respostas da imaginação, por horríveis que fossem, do que toda a precária verdade, as duvidosas razões da lógica. No final de tudo, a realidade sempre é pior.
pela memória. Por isso, muito do seu potencial linguístico vai além do que se narra,
sendo muitas vezes mais importante o próprio modo da narração.
A fluidez genérica da obra, então, contribui para um resgate marcadamente
subjetivo, onde narrador, personagem e autor se revezam e se complementam na
tentativa de inventariar uma cidade. Trata-se de um verdadeiro
inventario20 de bens
culturais, coleções secretas capturadas do ponto de vista do deslocamento.
A obra tem o olhar voltado a maior parte do tempo para Havana, salvo em
raros momentos (o início e o final da narrativa e outro perdido na metade da obra)
nos quais o narrador opta por especificar bem o lugar geográfico em que se
encontra: Barcelona. Até mesmo estes intervalos, entretanto, são motivo para
reviver a outra cidade e o olhar mediado pelo deslocamento que se lança a ela é o
responsável pela maneira distinguida como é retratada. Refiro-me ao sentimento de
deslocamento que é estar na Espanha: o mesmo que vive quando está em Cuba ou
em qualquer outra parte do mundo.
A distância física desperta um deslocamento subjetivo. O narrador, então,
ao contrário do que se pensa de um sujeito que decide tematizar suas origens, não
faz desse retrato um lugar comum. Ao recriar imagens, ao transpor paradigmas, abre
espaço para um trabalho artístico da imaginação. O olhar saudosista, o sentido da
perda irreparável, o indomável desejo de regresso à terra natal, bem como a sua
exaltação desmedida, cedem lugar às histórias do "disse-me-disse" ou do "faz-de-
conta", isto é, histórias que pairam no âmbito familiar/ pessoal e no âmbito da
20 Segundo o Dicionário da Real Academia Espanhola trata-se de um levantamento de bens e demais coisas pertencentes a uma pessoa ou comunidade, feito com ordem e precisão. Refere-se ainda ao papel ou documento onde estão escritas estas coisas. A objetividade e concretude a que nos remete o significado da palavra "inventário", então, se contrapõem ao caráter altamente subjetivo e abstrato com que a mesma é empregada no contexto da obra. Daí se explica também o paradoxo do título "inventario secreto".
imaginação, respectivamente. De forte iconicidade metafórica, portanto, é o seu
discurso. Falar do mar, da espera, do corpo, da luz forte ou da ausência dela, por
exemplo, funciona como verdadeiras metáforas que se conectam ao imaginário
Como sujeito deslocado, Estévez manifesta uma multiplicidade de
identidades, nas quais não existe mais um único centro, mas sim múltiplos centros
que lhe põem em uma condição de "
entre dominios, entre formas, entre hogares,
entre lenguajes", como bem descreve Aimee Bolaños (2010, p. 169) 21 Assim é que
tanto estando em Havana, quanto estando em Barcelona, a sensação de
deslocamento é a mesma, como percebemos através das duas citações que
seguem, respectivamente: "¿Qué haces cuando de pronto no entiendes por qué te
hallas en una ciudad que no es la tuya, tan lejos de todo lo que fuiste y sigues
siendo, como si hubieras entrado en el espectáculo equivocado?"22(p. 293)
Y la nueva realidad de la habitación hizo ostensible aquella especie de destierro en el que me sentía. ¿Y por qué digo destierro? ¿Por qué no puedo desembarazarme de un tufillo altisonante o autopiadoso? El diccionario de la Real Academia dice, más o menos, que destierro es una pena que consiste en expulsar a una persona de un lugar o territorio determinado. Dejando de lado la fabulosa ambigüedad de la palabra <pena>, ¿a mí quien me expulsó? ¿Y de dónde? ¿Por qué estoy lejos de La Habana, en Barcelona, en este sexto piso de la calle Valencia?23 (p. 295/296)
A condição de distanciamento constante acaba definindo o narrador da obra
por essência e, desde este lugar
não-lugar, constrói seu pertencimento em um
21 Trad.: entre domínios, entre formas, entre lares, entre linguagens.
22 Trad.: O que você faz quando de repente se encontra em uma cidade que não é a sua, tão longe de tudo o que você você e continua sendo, como se tivesse entrado no espetáculo equivocado?
23 Trad.: E a nova realidade do quarto fez ostensiva aquela espécie de desterro em que me sentia. E por que digo desterro? Por que não posso me desprender desse ar uníssono e auto-depreciativo? O dicionário da Real Academia diz, mais ou menos, que desterro é uma pena que consiste em expulsar uma pessoa de um lugar ou território determinado. Deixando de lado a fabulosa ambiguedade da palavra <pena>, quem me expulsou? E de onde? Por que estou longe de Havana, em Barcelona, nesse sexto andar da rua Valência?
contexto de deslocamento. Assim, apesar de possuir uma residência e uma carreira
já estabelecida tanto em Cuba quanto na Espanha, é como se habitasse e só
encontrasse espaço de representação
na viagem, vivendo os dois espaços
simultaneamente, desde longe, desde sua memória, desde sua invenção:
Semejante inmobilidad inauguró entre nosotros la otra tradición, la del peregrino inmóvil, de la que Lezama Lima sería el otro exponente insigne, esa variante del destierro que tanto encontraremos en nuestro siglo xx. Querer huir pero, estar preparado sólo para la huída mentirosa, la falsa y en el fondo más legítima huida de la poesia. Al parecer, no siempre exílio, destierro y lejanía son sinónimos de partida.24 (p. 263)
Posto isto, nos damos conta de uma constante que rege a vida do personagem/
narrador/ autor da obra em questão: a instauração de uma
poética da distância,
como nos sugere Leonor Arfuch (2013), reveladora de uma nova condição subjetiva
e literária, que confere ao autor e aos autores emergidos do exercício poético o que
reconheço como uma espécie de
empoderamento narrativo, resultante dessa
plasticidade performática de um autor em trânsito. Tal empoderamento se reflete até
mesmo no nível da linguagem que possui para Abilio Estévez um valor estético. O
gosto pelo o labirinto de histórias e a tendência pela lógica da complicação
argumentativa levaram ao que a crítica veio a definir como uma espécie de
Barroquismo literário.
Situo a escritura de Abilio Estévez neste cenário. Em entrevista concedida a
Asunción Horno Delgado, o autor esclarece os motivos que o levaram a sair da ilha:
24 Trad.: Semelhante imobilidade inaugurou entre nós a outra tradição, a do peregrino imóvel, da que Lezama Lima seria outro insigne expoente, essa variante do desterro que tanto encontraremos em nosso século XX. Querer fugir mas, estar preparado só para a fuga mentirosa, a falsa e no fundo mais legítima fuga da poesia. Pelo o que parece, nem sempre exílio, desterro e distância são sinônimos de partida.
"Yo creo que desde cierto punto de vista hacía tiempo que yo ya no vivía en La Habana. (.) De algún modo yo ya no me sentia ya partícipe de lo que ahí ocurría. Bueno, yo nunca me sentí partícipe de lo que estaba ocurriendo allí, la verdad; pero cada vez me sentía más excluido y vivía como más encerrado."25 (ASUNCIÓN, 2006, p.154)
Impelido por esse mal estar local decide sair de Cuba depois do plebiscito
instaurado em assembleia pelo Poder Popular em resposta ao "Projeto Varela",
elaborado pelos chamados dissidentes da Revolução. O resultado a favor da
manutenção pelo Sistema é praticamente unânime e, quando questionado pelo
representante do CDR (
Comite de Defensa de la Revolución) por que havia sido o
único de sua circunscrição que não havia ido votar ele responde: "ya no tengo más
nada que hacer aqui26." (ASUNCIÓN, 2006, p.155) Esse evento, entretanto, é
apenas o estopim, uma gota d'água em meio há quarenta anos de chamado "insilio",
a sensação perpétua de estar exilado em sua própria terra.
Num primeiro momento nos perguntamos por que Barcelona como destino, ao
invés de Miami, se consideramos os dois grandes êxodos cubanos em 1980, quando
mais de 120.000 pessoas fogem pelo porto de Mariel e o verão de 1994, com a
saída de milhares de
balseros, com destino aos Estados Unidos, por exemplo. A
resposta a essa pergunta vai muito além de resoluções políticas como o próprio
artista deixa entrever no desenrolar da entrevista: "Entonces pensé que Barcelona
era la civilidad porque allí está la editorial, allí me apoyan". (ASUNCIÓN, 2006,
p.155) Além do fato de Tusquets estar próxima de onde reside em Barcelona, a
cidade possui a acolhida que necessitava, é cosmopolita sem ser indiferente e
25 Trad.: eu acho que desde certo ponto de vista fazia tempo que eu já não vivia em Havana. (.) De algum modo eu já não me sentia já parte do que ocorria aí. Bom, eu nunca me senti parte do que estava ocorrendo ali, na verdade; mas cada vez me sentia mais excluído e vivia mais enclausurado.
26 Trad.: já não tenho mais nada o que fazer aqui
também tem a proximidade com o mar, um item que parece ser indispensável para
Sair da ilha para Abilio Estévez, portanto, foi um processo natural. Sempre foi
diaspórico, agora somente trasladava residência.
II - MEMÓRIA EM DESLOCAMENTO: Inventario secreto de La Habana
"Cuando hacemos memoria no sólo hacemos referencia a unos hechos objetivos, acontecidos en un
pasado próximo o lejano, sino que rescatamos, en el presente, la significación de estos hechos y la
importancia que tienen, en nuestro discurso, en la actualidad (…)".27
(Halbwachs, 1925
)
2.1. O protagonismo da memória no discurso contemporâneo
Abordar o tema da memória constitui grande desafio, dada a dimensão das
discussões e a profusão de autores que se debruçaram e se debruçam sobre a
temática, nas mais variadas temporalidades e vertentes. Entendendo a
impossibilidade de incluir todo um estudo de revisão crítica do tema, por uma
questão de recorte metodológico, apresento a seguir, de maneira concisa, alguns
pontos de reflexão sobre a memória que me permitirão uma aproximação à obra de
Abilio Estévez, me atentando especialmente para aqueles temas que de alguma
maneira são convergentes na obra estudada.
Em meio à decadência dos projetos históricos que conformam o nosso
imaginário contemporâneo, assistimos ao florescimento do exercício da
memória
como a valorização do ato de rememorar em si que, segundo Andreas Huyssen
(2000), funciona como "antídoto" frente à decadência dos ideais de progresso que
caracterizaram nossa modernidade. O passado passa a ser pilar e se constitui como
referência de enunciação no tempo de instância da palavra: um passado que, sendo
dito ou escrito, se faz presente no momento de realização da fala/ escrita.
27 Trad.: Quando produzimos memória não só fazemos referência à fatos objetivos, ocorridos num passado próximo ou distante, mas sim resgatamos, no presente a significação desses fatos e a importância que tem em nosso discurso, na atualidade.
O autor também nos fala de uma memória cultural, constituída não apenas
por dados de arquivos ou pela historiografia tradicional, mas também pela memória
contida nos vestígios, no que foi reprimido.
Para entender as ideias de Huyssen vale uma reflexão sobre a memória
cultural, da qual também nos fala Jesús Martín-Barbero (2007). De acordo com
Barbero essa memória é fruto de acontecimentos cotidianos que garantem o
passado por uma via mais subjetiva, posto que emerge de trocas diárias de
experiências. Ela – a memória cultural – é resultado de uma negociação que se dá
entre a experiência do passado e a consciência do presente; um presente que se
atualiza sem descartar o eco do vivido.
Segundo Zilá Bernd (2014), a memória cultural pertence à esfera do sensível
e do simbólico e escapa ao registro hegemônico do poder. Ela possui, portanto um
caráter polifônico e político.
Ao mesmo tempo, para Abil Trigo (2003) o retorno ao passado por meio da
memória não se faz de forma nostálgica e nem como um acúmulo de memórias.
Antes de ser compartilhada ela é digerida e processada pela vida comunitária para
só então ser posta em circulação e dar continuidade ao processo permanente de
construção identitária. (TRIGO, 2003, p.88-89)
Tão importante quanto a memória é o tópico do esquecimento. A memória
surge porque houve esquecimento de espaços, vazios de ações, lacunas por
preencher. Santo Agostinho (1995), uma das primeiras referências no tema, faz
alusão a uma memória sensorial, um tipo de memória que nos invade de forma
involuntária através dos sentidos: olhos, tato, audição, paladar e olfato se
sensibilizam para capturar o passado que adquire nuances poéticas distintas em
cada um dos cinco sentidos e são responsáveis por completar os espaços deixados
pelo esquecimento:
Do mesmo modo,
conforme me agrada (grifo meu), recordo as restantes percepções que foram reunidas e acumuladas pelos outros sentidos. Assim sem cheirar nada, distingo o perfume dos lírios do das violetas, ou então, sem provar nem apalpar, apenas pela lembrança, prefiro o mel ao arrobe e o macio ao áspero. Tudo isto realizo no imenso palácio da memória. Aí estão presentes o céu, a terra e o mar com todos os pormenores que neles pude perceber pelos sentidos, exceto os que já esqueci. É lá que me encontro a mim mesmo, se recordo as ações que fiz, o seu tempo, lugar e até os sentimentos que me dominavam ao praticá-las. É lá que estão também todos os acontecimentos que recordo, aprendidos ou pela experiência própria ou pela crença no testemunho de outrem. (AGOSTINHO, 2011, p.223)
Se me atenho à reprodução considerável da obra de Santo Agostinho é para
ressaltar o caráter poético de sua linguagem em relação ao significado para ele, do
ato de rememorar. Em Agostinho o exercício da memória possui tanto o caráter
involuntário (da invasão das lembranças por meio dos sentidos) quanto uma
dimensão voluntariosa: "conforme me agrada" (AGOSTINHO, 2011, p.223). Sendo
assim o autor manipula suas memórias e confere também uma dimensão criativa à
sua arte de rememorar. Na metáfora do "Palácio da memória", Santo Agostinho se
torna soberano, sujeito de suas ideias: "Quando lá entro, mando comparecer diante
de mim todas as imagens que quero. [.] afasto-as do rosto da memória, [.] as
chamo, [.] quando eu quiser." (AGOSTINHO, 2011, p.222). A memória em Santo
Agostinho também é manipulada e aporta o esquecimento: "a memória lembra-se do
esquecimento [.] quando me lembro do esquecimento, estão ao mesmo tempo
presentes o esquecimento e a memória: a memória que faz com que me recorde, e
o esquecimento que lembro." (AGOSTINHO, 2011, p.230).
Vale lembrar também que, nas palavras de Abil Trigo (2003), a ação de
esquecer se torna importante na cena literária na medida em que deixa entreabertos
espaços de representação da memória:
Esquecer de lembrar é outra forma de afirmar a vida dia a dia. Diferentemente da amnésia social, que implementa o corte seletivo e pedagógico de acontecimentos históricos, o esquecimento criativo promove uma irônica historicização da história, colocando em relevo sua materialidade discursiva e permitindo assim recuperar as marcas do diferente na trama do discurso, revelar a reminiscência como representação, e restabelecer a memória como lócus da alteridade. (TRIGO, 2003, p.90-91).
Neste sentido o tópico do esquecimento aporta criatividade à arte de rememorar
que, transplantada para o domínio discursivo, seleciona e apaga os acontecimentos
históricos com uma intencionalidade pré-determinada de promover memória
El olvido nos devuelve al presente, aunque se conjugue en todos los tiempos. En futuro, para vivir el inicio; en presente, para vivir el instante; en pasado, para vivir el retorno; en todos los casos, para no repetirlo. Es necesario olvidar para estar presente, olvidar para no morir, olvidar para permanecer siempre fieles.28 (AUGÉ, 1998, p. 47)
Saber esquecer é importante para que se disfrute o instante do presente. O
esquecimento é necessário tanto para a sociedade quanto para o indivíduo. Neste
sentido, Maurice Halbwachs (1990) nos diz que a memória é um construto social,
mas é também, sempre, um trabalho do sujeito que, fazendo parte do que chama de
"grupos de referência", conforma uma "comunidade afetiva", desde onde articula
suas lembranças. É o que reconhece como memória individual e memória
28 Trad.: O esquecimento nos devolve ao presente, ainda que se conjugue em todos os tempos. No futuro, para viver o início, no presente, para viver o instante; no passado para viver o retorno, em todos os casos para não repeti-lo. É necessário esquecer para estar presente, esquecer para não morrer, esquecer para permanecer sempre fiéis.
Em
Memoria y autobiografía – exploraciones en los límites, Leonor Arfuch se
questiona sobre a força da recordação:
¿Qué es entonces que "trae" con más fuerza el recuerdo, la imagen de la cosa ausente o la afección presente? Los "hechos" o su impacto en la experiencia? Y ¿cómo llega esa imagen al recuerdo, de modo involuntario o por el trabajo de la rememoración?29 (2013, p.66)
Faço-me os mesmos questionamentos em relação à presença da memória em
Inventario secreto de La Habana e tento respondê-los na medida em que nos
aproximamos da escritura de Abilio Estévez, no tópico subsequente. De imediato,
partimos do princípio de que toda ausência traz conjugada uma presença. É a
ausência- de espaço, tempo, que aporta toda a aparição- e todo trabalho- da
memória. Na mesma obra, a autora nos fala de "temporalidades da memória": "cosas
que sólo pueden aflorar paulatinamente, a medida que pasan los años y la distancia
atenua la angustia, libera el secreto o la prohibición."30 (p.25)
2.2. Inventario secreto de La Habana: a memória em deslocamento
"El recuerdo, como el olor, asalta, incluso si no es convocado."
(SARLO, 2012, p.9).
O caráter autônomo da memória, evidenciado na epígrafe de Beatriz Sarlo
(2012) possui na realidade um vínculo estreito com o presente do narrador que
precisa estar distante da cena rememorada para que haja o processamento da
memória. Escrever memórias é sempre uma experiência
deslocada se pensamos no
29 Trad.: O que é então que "traz" com mais força a recordação, a imagem da coisa ausente ou a afeição presente? Os "fatos" ou seu impacto na experiência? E como chega essa imagem à lembrança? De modo involuntário ou pelo trabalho da rememoração?
30 Trad.: coisas que somente podem aflorar paulatinamente, a medida que passam os anos e a distância atenua a angústia, libera o segredo ou a proibição.
eixo temporal, mas quando o deslocamento também espacial atua como fator
condicionante da escrita essas memórias se revestem de uma nova interpretação:
O indivíduo que permaneça toda a vida na mesma comarca, no mesmo imaginário, na mesma cultura, mostrará, em regra geral, uma alta identificação com tais coordenadas espaço-temporais; apresentará, em outras palavras, uma identidade sólida, estável, conformada por e conforme com uma realidade social com visos de imutável [.]. Mas quando esse indivíduo viaja física, ideológica e imaginariamente para fora de sua comarca, de seu imaginário ou de sua cultura, há de experimentar um duplo deslocamento no tempo e no espaço que com certeza lhe demandará alguma forma de negociação e agonia. Sua identificação com a totalidade espaço-temporal da sociedade de origem se verá cindida entre o aqui-agora da nova realidade cotidiana e o então- lá confinado à memória [.]. (TRIGO, 2003, p.101-102).
Norteando nosso estudo sobre a memória em deslocamento, Abil Trigo (2003) nos
faz refletir sobre o olhar anacrônico resultante do deslocamento que cria sempre o
novo no presente: "Entre el sueño de mi paseo errante por La Habana y el despertar
con la visión de la torre de la Sagrada Familia, algo notable, supuse, había
ocurrido."31 (p. 292). Depois da experiência do deslocamento, o narrador vai precisar
fazer algumas negociações para habitar esse novo espaço. Uma delas se concretiza
por meio da fluidez na linguagem, que transita entre a autobiografia, a crônica, o
diário ou a crônica, por exemplo.
A escolha por guiar sua escrita por tais discursos da memória, portanto,
demonstra a clara intencionalidade do autor em manejar um discurso memorialista e
a impossibilidade de produzir literatura no presente sem as marcas do passado.
Cabe aqui a diferenciação entre discurso memorialista e saudosista. Enquanto o
primeiro carrega as marcas históricas, aquilo que não se
pode esquecer, o segundo
possui a carga do sentimentalismo, aquilo que não se
quer esquecer. Situo Abilio
Estévez entre os dois polos, com sutil inclinação para o memorialismo, pois apesar
31 Trad.: Entre o sonho do meu passeio errante por Havana e o despertar com a visão da torre da Sagrada Familia, algo notável, supus, tinha acontecido.
da insistência e da fixação pelos mesmos objetos na sua narrativa (o que por si só
denunciariam um saudosismo desmedido), o que salta à superfície é a história de
Cuba e do povo cubano filtrada por um poeta deslocado, sem o peso, entretanto, da
crítica afiada e direta ao sistema sócio-político vigente, numa evidente relação entre
memória individual e memória compartilhada.
Abilio Estévez precisa sair da ilha para se sentir parte dela, pois talvez
somente a memória fará esse papel de articulação entre presente líquido e passado
sólido. Reviver os fatos por intermédio da memória é a única segurança do sujeito
deslocado. Olhar para o passado compensa a instabilidade do presente ao
neutralizar os efeitos de uma inserção excessivamente fluida do individuo na
¿No será que La Habana fue la ciudad cuando se convertió en verdadero recuerdo, es decir, cuando dejó de ser sólo lejanía, para ser lejanía y recuerdo? ¿No será que para entender una ciudad, aun aquella en la que uno ha nacido y vivido, es preciso abandonarla, para poder evocarla después? (.) Mi verdadera vida siempre ha ocurrido <<después>>. En el recuerdo. Como si los acontecimientos se sucedieran para ser re-observados (y relatados). Desde el tren, cuando ya no sirve otra cosa sino la memoria. Así veo deshacerse el presente, este presente, como si en él nada tuviera lugar, y sólo la memoria fuera capaz de demostrar que no ha sido así, y de recomponer los trozos de una sola dicha, y articular los rasgos de una persona o armar los atributos de una ciudad.32 (p 284)
No entanto, no tempo dos
líquidos como nos aponta Zygmaunt Bauman
(2001), nem mesmo a memória constitui sólido alicerce, estando também ela sujeita
à precariedade, ao movimento fluido, reinventando o próprio gênero e a arte de
rememorar. É o que reconheço como a memória deslocada. Nesta modalidade de
memória a imaginação alcança o seu ápice ao se revestir de poesia. A imaginação
poética da qual se vale Abilio Estévez é, portanto, consequência da parcela de
32 Trad.: […] verdadeira vida sempre aconteceu depois. Na recordação. Como se os acontecimentos sucedessem para ser re-observados (e relatados). Desde o trem quando não serve outra coisa senão a memoria. Assim vejo se desfazer o presente, este presente, como se nele nada tivesse lugar, e só a memoria fosse capaz demonstrar que não foi assim, e de recompor os pedaços de uma só sina, e articular as características de uma pessoa ou armar os atributos de uma cidade.
instabilidade que o próprio gênero aporta ao diluir trajetos, ao propor novos
Porque o artista é aquele que aborda o imaginário do mundo, e quando as ideologias do mundo, as previsões, os castelos de areia começam a falhar, é preciso pois começarmos a fazer emergir este imaginário. Neste imaginário não se trata de sonhar o mundo, mas sim de penetrá-lo. Isso significa que uma intenção poética pode me permitir conceber que na minha relação com o outro, com os outros, com todos os outros, a Totalidade-Mundo, eu me transformo tocando-me com o outro, permanecendo eu mesmo, sem renegar-me, sem diluir-me, é preciso toda uma poética para conceber esses impossíveis [.] (GLISSANT, 1995, p 43).
Nas narrativas de
Inventario secreto de La Habana é preciso imaginar, muito
mais que ativar a memória, para revisitar um passado, que o envolve numa
atmosfera de proteção que de alguma forma representa o espaço que estaria à
salvo, por ser espaço do vivido. Esse regresso só é possível, entretanto, por meio da
He aqui uno de los territórios de mi infancia al que no me gustaría regresar: supongo que me basta el poder de su recuerdo. A veces pienso que, si fuera posible, por una extraña magia de la vida, volver a Niña Pobre, aquella finquita de La negra Chepa, entre Punta Brava y El Guatao, tal posibilidad destruiria la posibilidad de um recuerdo perfecto. De todos modos, por fortuna tal vez, no existen esas magias, o no las hemos encontrado, y esos regresos solo parecen posibles gracias al ensalmo de la literatura.33 (p. 160)
O artista prefere a recordação perfeita de sua imaginação à mínima possibilidade do
choque com a realidade imperfeita do território real.
Neste mesmo contexto da memória e suas representações artísticas, o tema
da ruína alcança singular protagonismo: "Las ruinas de La Habana están de moda."
(MORÁN, 2008, p.45). É quase impossível encontrar um livro turístico ou de
33 Trad.: Eis aqui um dos territórios de minha infância ao qual eu não gostaria de voltar: imagino que me basta o poder de sua lembrança. As vezes penso que, se fosse possível, por uma estranha magia da vida, voltar a Niña Pobre, aquela fazendinha da negra Chepa, entre Punta Brava e El Guatao, tal possibilidade destruiria a possibilidade de uma recordação perfeita. De toda forma, por sorte, talvez, não existem essas magias ou não as encontramos, e esses retornos só parecem possíveis graças ao respaldo da literatura.
fotografias da cidade que não retrate, nostalgicamente, os escombros de suas
ruínas. A ruína legitima a transformação do espaço presente em espaço da
memória, em espaço passado. Mas, nos perguntamos como ler uma ruína habitada,
um lugar que já no presente é memória? Como a perda física, material, que se
estende para o plano do conceitual, pode gerar uma poética? É esse o tipo de
reflexão que encontramos na obra de Abilio, disposto a interpretar a Havana e sua
ruína e elaborar uma poética escritural baseada na estetização dos escombros, da
margem, da decadência. É justamente
a ruina que permite ver a Havana textual de
Estévez como duas cidades sobrepostas. Habita-se a Havana banal e cotidiana,
com suas ruínas, sua sujeira e sua escassez, mas o passante e leitor atentos
permitem-se alcançar um nível mais profundo de interpretação. Fugindo da ideia de
"arruinado", a ruína do presente, a que se habita, passa a ser lida como novo,
moderno, um elemento contemporâneo e dinâmico. No presente, a ruína não se
limita a uma imagem estática, física e simbólica do escombro, da paisagem
arquitetônica envelhecida, mas denunciam também a depreciação da vida cotidiana:
[.] a ruína torna-se, não obstante, um fenômeno mais significativo e pleno de sentido que os fragmentos de outras obras de arte destruídas. Uma pintura, da qual partículas de cor tenham caído, uma estátua com membros mutilados, um texto poético antigo, do qual palavras e versos se perderam- todos atuam somente a partir do que neles ainda existe de formação artística ou daquilo que a fantasia pode construir baseando-se nesse resto: sua visão não constitui nenhuma unidade estética, ela não oferece nada mais que uma obra de arte subtraída de determinadas partes. Ao contrário, a ruína da obra arquitetônica significa que naquelas partes destruídas e desaparecidas da obra de arte outras forças e formas- aquelas da natureza- cresceram e constituíram uma nova totalidade, uma unidade característica, a partir do que de arte ainda vive nela e do que de natureza já vive nela. (SIMMEL, 2005, p.136)
A caracterização dessa ruína no reino da literatura é reveladora do ponto de
vista da ganância: seus procedimentos retóricos se sustentam na proliferação léxica,
no excedente de sentido e numa espécie de saturação verbal, onde não há limites
entre a fala do narrador e os metatextos, por exemplo. Falas de personagens se
misturam indistintamente com a narração de primeiro plano. Asserções que se
somam, informações que se entrecruzam e parecem não ter fim: ora interrompem a
escrita, ora complementam-na. Num ato aparentemente involuntário as lembranças
irrompem sem controle e ganham autonomia à medida que vão sendo associados a
diversos espaços.
Ao transferir para o mundo literário as ruinosas imagens de uma Havana pós-
revolucionária, que carregamos em nosso imaginário quando pensamos em Cuba,
nos damos conta de sua enorme plasticidade e – performaticamente- lemos e
representamos uma vertente da poética de Abilio Estévez. Trata-se de ler a ruína
como concretização de duas temporalidades, isto é, como portal por onde
transitariam duas dimensões– espaço e tempo- onde o excesso de objetos e
paisagens tende a refletir justamente toda espécie de ausência, carência e vazio: as
ruínas falam, dialogam com a paisagem real e imaginária, contracenam com seus
personagens, narram suas próprias histórias.
A performance da ruína na literatura é responsável pela passagem de seu
caráter passivo- lugar comum de interpretação que lê a ruína como os resquícios do
passado- ao seu status ativo, favorecendo uma outra ordem de expressão, na qual
não só o objeto possui autonomia, mas o próprio meio e seus componentes
ressignificam e são ressignificados, numa via de mão dupla. Como as ruínas, a
linguagem com sua capacidade performativa faz voltar a viver, contribuindo para que
a memória não se esgote.
As camadas superpostas das ruínas, então, registram mais que o desgaste
estrutural, arquitetônico, econômico e político de um país, o abandono humano de
um povo que, "ilhado", não acompanhou o movimento à sua volta, estagnou seu
crescimento e foi destinado tão somente a observar e a esperar. Como uma
maldição sem fim: "[.] vivir en una isla tenía algo de barco a la deriva." 34 (p.49)
Há na narrativa um desejo de se transportar ou se manter num tempo e
espaços passados. Seus personagens, por exemplo, resistem às transformações da
cidade e insistem em velhas referências, como os nomes das ruas: "En La Habana
existen muchísimas calles que no se llaman como se llaman, que han sido
inútilmente rebautizadas, y cuyos nuevos nombres la obstinada memoria colectiva
se empeña felizmente en olvidar.35 (p.199) Da mesma forma que a memória
partilhada se ocupa pelo ato de lembrar, também ela é importante para a atividade
de esquecer, numa tentativa de inventariar sua própria cidade.
A memória individual de seus personagens, neste sentido, contribui para um
diálogo com o coletivo. É a chamada "memória cultural" de Martín Barbero, já
referida anteriormente. Isto é, uma memória que é produto de uma teia de aranha de
eventos e fatos cotidianos, apagados, esquecidos ou selecionados, não um simples
regresso ao passado em tom nostálgico com o objetivo de resgatá-lo. Constitui
importante ferramenta de articulação entre passado e futuro no momento em que se
busca alguma espécie de ancoragem para ler o presente:
Nunca sabremos si todo tiempo pasado fue verdaderamente mejor, o así nos lo parece porque es tiempo leído, no vivido; tiempo decifrado en las páginas de autores que lo han desmitificado y vuelto a mitificar para nosotros. Leer es un acto de una grandeza suprema. Mucho más deleitoso que vivir.36 (p.73)
34 Trad.: [.] viver em uma ilha tinha algo de barco à deriva. 35 Trad.: Em Havana existem muitas ruas que não se chamam como se chama, que foram inutilmente rebatizadas, e cujos novos nomes a obstinada memória coletiva se empenha, felizmente em esquecer.
36 Trad.: nunca saberemos se todo o tempo passado foi verdadeiramente melhor ou se assim nos apresenta porque é tempo lido, não vivido; tempo decifrado nas páginas de autores que o desmitificaram e voltaram a mitificá-lo para nós. Ler é um ato de uma grandeza suprema. Muito mais deleitoso do que viver.
Uma vez considerada essa elasticidade da memória, haja visto suas infindáveis
reapropriações por distintos autores, dos mais variados contextos enunciativos
(político, histórico, poético, literário), em
Inventario secreto de La Habana a memória
é uma massa bruta de barro de modelar, esperando para ser esculpida pelas mãos
de seus artesãos.
A natureza criativa e proliferativa da memória faz com que a cidade e o país
sejam representados como espaços supersaturados de sentido. No que num
primeiro momento constitui uma rede de discursos múltiplos e desconexos, no final é
lido, amarrado e costurado por um narrador totalizador que, valendo-se da
imaginação alheia, ou seja, de seus personagens, traz à tona sua própria
subjetividade hegemônica. A memória desse passado coletivo é amalgamada na
obra, propositalmente quando se pensa na formação acadêmica de um escritor que
domina os artifícios poéticos da linguagem e ainda, tem uma sólida formação na
tradição literária cubana e de língua espanhola. Assim é como Abilio Estévez se
apropria do discurso da memória de outros escritores, criando em cima da criação.
Eloquente é o seguinte exemplo; trata-se de um fragmento que toma do diário de
Juan Ramón Jimenez e é incorporado à textualidade de sua obra:
La Habana está en mi imaginación y mi anhelo andaluces, desde niño. Mucha Habana había en Moguer, en Huelva, en Cádiz, en Sevilla. ¡Cuántas veces, en todas mis vidas, con motivos gratos o lamentables, pacíficos o absurdos, he pensado profundamente en La Habana, en Cuba! La extensa realidad ha superado el total de mis sueños y mis pensamientos; aunque, como otras veces al "conocer" una ciudad, la ciudad presente me haya vuelto al revés su imagen de ausencia y se hayan quedado las dos luchando en mi cámara oscura. Mi nueva visión de La Habana, de La Cuba que he tocado, su existencia vista, quedan ya incorporadas a lo mejor del tesoro de mi memoria. (Juan Ramón Jiménez, Mi diario poético, 1936- 1937)37 (p.150)
37 Trad.: A Havana está em minha imaginação e em meu desejo andaluzes, desde criança. Muita Havana havia em Monguer, em Huelva, em Cádiz, em Sevilla. Quantas vezes, em todas as minhas
Revisitar um passado em
Inventario secreto de La Habana tem sentido
apenas quando se busca entendê-lo. E esse entendimento, ou um simples
questionamento só existem, no caso do narrador, porque a distância o permite:
Lo recuerdo: si estábamos contentos, malhumorados o simplemente aburridos (aún no andábamos en edades propensas a la tristeza), subíamos a los tejados, a la torre del Castillo del degollado, a ver el mar. Siempre, cada día, veíamos el mar. No había que hacer demasiado esfuerzo. Subíamos a los tejados de las casas altas y desde allí lo contemplábamos, más inquietante, más misterioso que cuando estábamos en la orilla.38
A condição de deslocamento, para o personagem, potencia as sensações
de contemplação e mistério que o mar lhe proporcionava. O mar de Havana é outra
metáfora recorrente na narrativa de Abilio Estévez, a que pode ser associada ao
repertório de metáforas do escritor deslocado do ambiente insular. Apesar de nos
remeter à ideia de fluidez e instabilidade, para o personagem é território firme, pois
está no plano real: "No hay nada firme en una isla. [.] lo verdaderamente firme está
en el mar"39 (p. 19). Daí que o mar de Cuba seja o mar do medo: "En La Habana
siempre me dio miedo el mar. Y como en La Habana casi todos los caminos
conducen al mar, casi todos los caminos me conducían al miedo." 40 (p. 18) O mar
vidas, com motivos gratificantes ou lamentáveis, pacíficos ou absurdos, pensei profundamente em Havana, em Cuba! A extensa realidade superou o total dos meus sonhos e meus pensamentos. Ainda que, como outras vezes ao "conhecer" uma cidade, a cidade do presente tenha virado ao inverso sua imagem de ausência e tenham ficado as duas lutando em minha câmara escura. Minha nova visão de Havana, da Cuba que tive contato, sua existência vista, ficam já incorporadas ao melhor do tesouro de minha memória.
38 Trad.: Lembro bem: se estávamos contentes, mal-humorados ou simplesmente entediados (ainda não estávamos na fase propensa à tristeza), subíamos nos telhados ou na torre do Castelo do Degolado, para ver o mar. Sempre, todos os dias, víamos o mar. Não era preciso fazer muito esforço. Subíamos nos telhados das casas altas e de lá o contemplávamos, mais inquietante, mais misterioso do que quando estávamos na beira do mar.
39 Trad.: Não existe nada firme em uma ilha. (.) O verdadeiramente firme está no mar.
40 Trad.: Na Havana sempre me deu medo o mar. E como em Havana quase todos os caminhos levam ao mar, quase todos os caminhos me conduziam ao medo.
que carrega em suas lembranças é o mar do medo, das promessas, da fuga, da
ausência. O mesmo mar recuperado por suas leituras de José Martí:
Odio el mar, sólo hermoso cuando gime", decía Martí en uno de sus versos libres. Como todos los mares, también aquel de La Habana gemía y se enfurecia (o se enfurece) sin previo aviso, sólo que, a diferencia de otros, al mar de La Habana le parecia divertido romper en el Malecón con demasiada violencia. El mar se reacía, recomenzaba cada dia frente a la ciudad. Se hubiera dicho que le gustaba amenazarla.41 (p.37)
As coisas ruins sempre chegaram e chegam pelo mar, desde invasões
até tempestades. Diferente do mar de Palma de Mallorca, que não possui nenhuma
espécie de apreensão nem oferece ameaça.
A memória também é textualizada por meio das sensações. Estévez, como
poeta, lembra com os sentidos, recria de modo sensorial o passado. A captura do
vivido ocorre nas pequenas ações, como tomar um café ou vagar sem propósito por
uma rua qualquer. Gestos que devêm em "ato mágico, de tão profundas
ressonâncias espirituais que faz possível ‘habitar una isla en cualquier parte'."
(Bolaños, 1998, p.88). Faço menção à capacidade própria do sujeito deslocado de
reviver um espaço e tempo anteriores na simples menção ou imaginação do ato que
lhe chega por extensão até o presente. De maneira que, mesmo não estando mais
em Cuba, o autor habita a ilha em qualquer parte do mundo.
O narrador de
Inventario secreto de La Habana recorda pelo cheiro das
cidades. Em suas lembranças Havana cheirava a gás, a pó, por vezes aguarrás e
gasolina. Já Marianao possuía o ar leve da vegetação; em reparto Hornos os bodes
e cavalos defecavam nas ruas e aquele cheiro era marcante para sua infância. Da
41 Trad.: "Odeio o mar, só bonito quando geme", dizia Martí em um de seus versos livres. Como todos os mares, também aquele de Havana gemia e se enfurecia (ou se enfurece) sem prévio aviso, só que, diferente de outros, o mar de Havana achava divertido romper no Malecón com tamanha violência. O mar se refazia, recomeçava todos os dias diante da cidade. Se diria que gostava de ameaçá-la.
mesma forma que caminhar pelas ruas do bairro era apurar o olfato para o jogo de
adivinhação do cardápio do dia e o ouvido ir registrando o silêncio das ruas e casas,
típico da hora que se seguia ao almoço. Recordar pelo som, por sua ausência ou por
seu excesso: o ruído.
¿por qué caminos llegan los habaneros a recordar o a afirmar que son existencias, seres de verdad, formados de cosas concretas como la carne, la sangre y los huesos? [.] La primera consiste en tocar. Tocar siempre a toda hora. Extender la mano, palpar [.] Constar que el otro está ahí. [.] La segunda táctica consiste en hacer ruido. Hablar sin parar, gritar, agitar las maracas, golpear el cuero del tambor42 (p.180)
O barulho de Havana suplica um lugar real. Também o tato, o tocar-se, reclamam
uma existência própria e a do outro. As sensações juntas lutam contra o
esquecimento e o fantasmagórico que representa viver na ilha; são um esforço de
memória, em tempo presente. Lembrar que há vida, lembrar que há pessoas.
Reivindicar os prazeres por meio dos sentidos: tocar, sentir, apalpar, ver,
experimentar, cheirar, enfim, viver intensamente o presente.
42 Trad.: Por que caminhos chegam os havanos a recordar ou a afirmar que são existências, seres de verdade, formados de coisas concretas como a carne, o sangue e os ossos?
III – DISCURSOS DA MEMÓRIA NA ESCRITA EM DESLOCAMENTO DE ABILIO
ESTÉVEZ
"[.] cada periodo tiene su propia concepción de la escritura autobiográfica y, más
precisamente, su propia concepción de la memoria, de las maneras de recordar que harán que la
escritura del yo coincida con lo que la época espera del género."43
(Molloy, 1991, p.186)
"Es una pena que los historiadores se ocupen sólo de los grandes hechos, cuando la
pequeña historia es mucho más interesante. "44
(
Inventario secreto de La Habana, p.24)
3.1. Discursos da memória em Inventario secreto de La Habana
Apesar de ter sido alvo de inúmeras críticas quando da publicação de
O Pacto
Autobiográfico, em 1975, Philippe Lejeune continua sendo referência incontestável
para o estudo do gênero
autobiografia na atualidade. Impelido a se defender e a
reformular seu estudo, volta a se debruçar sobre a teoria em
O pacto autobiográfico
(bis), edição de 1982, onde define e distingue a autobiografia de outros gêneros:
"Relato retrospectivo em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência,
pondo ênfase em sua vida individual e, em particular, na história de sua
personalidade" (LEJEUNE, 1994, p.50)
Tal definição, segundo o próprio autor, põe em manifesto quatro condições
para que haja autobiografia: a primeira delas diz respeito à forma da linguagem, que
deve ser a narrativa em prosa; em segundo lugar o tema tratado é a vida individual e
a história de uma personalidade; na terceira condição existe uma identidade do autor
43 Trad.: Cada período tem sua própria concepção da escritura autobiográfica e, mais precisamente, sua própria concepção da memória, das maneiras de recordar que farão com que a escrita do eu coincida com o que a época espera do gênero.
44 Trad.: É uma pena que os historiadores se ocupem somente dos grandiosos acontecimentos, quando a pequena história é muito mais interessante.
(cujo nome remete à pessoa real) e do narrador; e por último, existe uma identidade
do narrador e do personagem principal e uma perspectiva retrospectiva da narração.
Uma autobiografia somente pode ser classificada como tal se reconhecemos que
cumpre simultaneamente estes quatro requisitos.
Mais que um modo de escrita a autobiografia é um modo de leitura. Uma vez
que o autor afirma em seu texto que irá tratar de sua vida, automaticamente o leitor
ativa um modo de leitura tendencioso à confrontação
extra textual, numa espécie de
jogo dos sete erros onde o mínimo deslize entre a realidade e a escrita dessa
realidade, acaba por romper o contrato textual dialógico pré-estabelecido entre autor
Trata-se do pacto autobiográfico: "a afirmação, no texto, da identidade entre
autor-narrador-personagem, remetendo em última instância ao nome do autor,
inscrito na capa do livro." (Lejeune, 2008, p.14) Numa de suas formulações mais
concisas o pacto autobiográfico é "o enganjamento de um autor em contar
diretamente sua vida (ou uma parte, ou um aspecto de sua vida), num espírito de
verdade". (Lejeune, APUD Pace, 2012, p. 57)
O fato de que dita categoria nominal seja nula em
Inventario secreto de La
Habana, não impede que reconheçamos em diversos fragmentos da obra uma
equivalência entre as três instâncias discursivas. Da mesma forma que o fato de não
existir pseudônimo nem nome fictício na obra garantindo uma identidade assumida,
não representa um afastamento do gênero autobiográfico. Não podemos, é claro,
classificar
Inventario secreto de La Habana, como texto autobiográfico, mas não
restam dúvidas que, se assumimos o desafio – deixado entreaberto pelo autor que
não firma nenhum pacto, podemos entrever as marcas do autobiográfico em sua
Leonor Arfuch (2002), diante desse deslocamento de referencialidade estável
para as diversas estratégias de auto-reapresentação do sujeito coloca em cheque a
própria noção de "pacto autobiográfico" entre leitor e autor. Tentando dar conta
desse novo cenário onde as formas discursivo-genéricas clássicas começam a se
hibridizar e o valor biográfico se ressemantiza, surge um terreno ao qual denomina
como "espaço biográfico" (uma alusão a Lejeune), destacando o "horizonte de
inteligibilidade e não a mera somatória de gêneros já conformados em outro lugar."
(ARFUCH, 2002, p.16)
O espaço biográfico ao qual nos remete a escritora argentina se compõe de
múltiplas vozes; ao mesmo tempo em que se destaca a heterogeneidade genérica
também se ressalta a sua relativa estabilidade. As constantes misturas e
hibridizações vão muito além da classificação genérica engessada referente aos
componentes do espaço biográfico de Lejeune.
Também a noção de
pacto de leitura se flexibiliza na cena contemporânea.
De Man (APUD Arfuch, 2002, p.74) propõe que a consideremos, antes de tudo, uma
figura do entendimento ou da leitura. Indo de encontro à noção contratual/ jurídica
encerrada no pacto, ocorre na verdade um "momento autobiográfico", resultado de
um "alinhamento entre dois sujeitos envolvidos no processo de leitura, no qual
ambos se determinam mutuamente por uma substituição reflexiva" (1984, p. 68)
O que anseio destacar com esse aporte teórico é a importância de se olhar
para as narrativas do eu e seus desdobramentos na cena contemporânea como num
minucioso estudo de casos. Não por me restringir às suas particularidades, mas sim
cuidando para não perder de vista a dimensão relacional, de articulação, tão
ressaltada pela teórica argentina.
Segundo Pozuelo Yvancos (2006, p. 34),
Deja la autobiografia progresivamente de ser una comunicación de un yo con un tú para construirse, en buena parte de la bibliografia que la recorre, en la relación de ese yo con ese texto; mejor: en el modo como el texto construye ese yo. Un verdadero, tardio y redivivo triunfo de la textualidad y de la lectura inmanente.45
Nessa mudança de perspectiva, identifico a presença autobiográfica em
Inventario secreto de La Habana. Muito mais que um desejo de afirmação, exaltação
ou desvelamento do "eu" para um "tu", o autobiográfico se assoma à narrativa com
evidente singularidade.
José Maria Pozuelo (2013) recorre ao sintagma "figuraciones del yo"46 para se
remeter à apropriações autobiográficas ou simuladas como tais e se pergunta se
haveria uma forma de existir uma voz pessoal sem interferência biográfica, isto é, de
ser voz de quem escreve e não constituir-se como experiência vital concreta. A
resposta à pergunta aparece em seguida: por meio do que denominou "voz
reflexiva", responsável por realizar essa figuração pessoal. Trata-se de uma voz que
permite ao eu construir um lugar discursivo, pertencente ou não ao autor, ou instaura
um pertencimento diferente do referencial. Desse lugar emerge uma voz figurada,
que por sua vez se divide entre a voz de um eu pensante e um eu narrante.
Em
Inventario secreto de La Habana, então, é possível verificar uma aproximação ao
que Pozuelo chama de um
eu narrativo- reflexivo figurado.
A questão da
figuração de José Pozuelo passa pela linha de definição de
María Moliner: Figurar; "Hacer algo con apariencia de lo que se expresa" e remete a
"aparentar, fingir, simular". Também inclui "imaginarse", "presumir", ou "suponer". De
acordo com o autor: "dibujo imaginativo, fantasía de algo o bien su representación,
45 Trad.: A autobiografia deixa de ser progressivamente uma comunicação de um eu com um tu para se alimentar, em boa parte da bibliografia que a recorre, na direção desse eu com esse texto; melhor: no modo como o texto constroi esse eu. Um verdadeiro, tardio e reaparecido triunfo da textualidade e da leitura imanente.
46 Trad.: Figurações do eu
algo que sin serlo, o sin ser de una manera determinada, lo suplanta o figura, esto
es, representa imaginariamente como tal.47" (POZUELO, 2013, p.23).
Neste sentido, a narrativa de Abilio Estévez também nos deixa entrever uma
outra possível textualização do autobiográfico: uma aproximação ao âmbito da
autoficção. A escolha por uma aproximação da autobiografia ao invés de se valer
por completo do gênero, também se justifica pela visão anti-autobiográfica (seja ela
acadêmica ou jornalística) que considera a autobiografia como sinônimo de literatura
de segunda divisão, num patamar muito abaixo das obras de ficção. Iluminando o
contexto da autobiografia no cenário espanhol, Manuel Alberca constata que "Esta
opnión, que no por ser aceptada es menos injusta, adquiere en España una
tonalidad más peyorativa aún que la tiñe de rechazo moral."48 (2009, p.1).
Estando Abilio Estévez instaurando sua obra em Barcelona, também esse tipo
de negociação deve ser feita para que haja tanto um interesse editorial quanto de
público em relação à obra. Observo então que a opção pela hibridização genérica
responde também a uma necessidade de atender a uma expectativa mercadológica
múltipla que corresponde o contexto das editoras catalanas.
Neste ponto vemos uma aproximação à autoficção em sua narrativa. Valendo-
se do interesse que suscita o autobiográfico e se esquivando da sua desvalorização
literária, a autoficção volta à cena pós-moderna. A autoficção tal qual como
concebida por Doubrovsky seria "uma variante pós-moderna" da autobiografia na
medida em que ela não acredita mais numa verdade literal, numa referência
47 Trad.: desenho imaginativo, fantasia de algo ou mesmo sua representação, algo sem sê-lo, ou sem ser de uma maneira determinada, o suplanta ou figura, isto é, representa imaginariamente como tal.
48 Trad.: Esta opinião, que não por ser aceitada é menos injusta, adquire na Espanha uma tonalidade mais pejorativa ainda a marca de rechaço moral.
indubitável, num discurso histórico coerente e se sabe reconstrução arbitrária e
literária de fragmentos esparsos de memória. (APUD Vilain, 2005, p.212) A
autoficção seria um romance autobiográfico pós-moderno, com formatos inovadores:
são narrativas descentradas, fragmentadas, com sujeitos instáveis que dizem "eu"
sem que se saiba exatamente a qual instância enunciativa ele corresponde.
(FIGUEIREDO, 2013).
À primeira vista, a classificação de uma obra como autobiográfica a partir da
definição do gênero, poderia ser bem simples, se dependesse exclusivamente do
cumprimento exato dos quatro tópicos elencados por Lejeune, como visto
anteriormente. No entanto, no contexto contemporâneo da escrita autobiográfica,
não só a definição genérica torna-se conflituosa como resulta difícil apontar, no
interior do próprio discurso da memória, os limites imprecisos entre as memórias e o
autobiográfico, a autoficção e outros discursos da memória como os inventários, o
diário e a crônica, também presentes no
corpus desta pesquisa.
Segundo Luana Soares de Souza, "A escrita do Eu pode ser definida como
uma forma de salvação do homem dos nossos dias em um mundo que já descrê de
projetos de salvação coletiva" (SOUZA, 1997, p. 126). Pensando o contexto triunfal
revolucionário cubano de 1959 e a posterior frustração desse projeto nacional, Abilio
Estévez de certa forma é o resultado desse quadro político- cultural apontado por
Souza, panorama que o leva pelos mais variados caminhos discursivos. A fluidez
com que transita por tais universos, portanto, se justifica na medida em que o autor
encontra novas formas de ancoragem do eu.
De acordo com Maria José Furió (2004), em texto publicado na Revista
Renacimiento (Sevilla):
La Revolución ha dado lugar a ese espécimen característico que es el escritor exiliado. Resistente o peleón, expulsado o invitado a marcharse, o del tipo me- voy- porque- quiero, lo que escribe el escritor exiliado pocas veces carece de interés.49
Sem a intenção de discutir a relevância do que escreve um sujeito exilado, nem de
discutir aqui a preferência pelo termo
diaspórico em substituição de
exiliado para
definir o estatuto de Abilio Estévez (tema discutido no primeiro capitulo desta
dissertação), a citação se justifica pela inauguração de uma subjetividade na cena
literária, uma presença autobiográfica menos centrada no
eu e mais voltada para o
seu entorno; uma janela aberta para a descoberta e ativação de novas escritas de si,
resignificadas pelo meio. Refiro-me a discursos como o memorialista, o inventário, o
diário de viagem e a crônica que funcionam como portos de ancoragem do autor.
Classificar sua obra quanto ao gênero é tarefa árdua; neste desafio, Estévez
faz um inventário de
sua Havana marcadamente subjetivo, organizado basicamente
em três níveis narrativos, segundo Palmero González (2012, p. 63):
Por um lado, um registro de lugares, personagens e lembranças que conformam uma cidade secreta, íntima e pessoal; reflexões do escritor que, concretizado na figura de um
eu narrativo oscilante entre o testemunhal e o ficcional, realiza um passeio pelas ruas havaneiras, seus monumentos, suas esquinas, seus parques, destacando o anônimo e habitualmente silenciado da cidade. Esse inventário de bens culturais se aproxima da autobiografia e do relato memorial, se consideramos os longos capítulos em que conta sua vida e a relação pessoal que teve com escritores e intelectuais cubanos dos anos setenta e oitenta, por exemplo.
Cabe aqui importante observação de Boltansky y Grenier (2011) APUD
Leonor Arfuch (2013) sobre os inventários:
49 Trad.: A Revolução cedeu espaço a essa espécie característica que é o escritor exilado. Resistente ou "brigão", expulso ou convidado a se retirar, ou do tipo vou-porque-quero, o que escreve o escritor exilado poucas vezes carece de interesse.
La idea (de los inventarios) fue reunir todo lo que queda de alguien y hacer con eso un retrato negativo […]. Los inventarios no enseñan nada sobre nadie. Su único interés es que cada persona que los vea encuentre allí su propio retrato, ya que todos poseemos los mismos objetos- todos tenemos una cama, un cepil o de dientes, un peine…-. Aprendemos más sobre nosotros mismos que sobre la persona a quien concierne el inventario.50 (ARFUCH, 2003, p.45)
Sendo assim,
Inventario secreto de La Habana mistura na sua textualidade
múltiplas lendas de Havana, por meio de um inventário de textos que contam
nostalgicamente histórias da cidade, costumes literários e tradições. Assim, o texto
de Abilio Estévez recupera uma verdadeira galeria literária de textos organizados
cronologicamente com citações que começam em 1800 e terminam em 2002.
Mas
Inventario secreto de La Habana é também um inventário de lembranças
de Abilio: becos, ruelas, cafés, praças, um inventário de lugares que existem, mas
que também não existem, porque estão recriados pela imaginação do escritor
distante. Esse inventário de Cuba acaba representando, ao final, mais que um
simples guia turístico, indo muito além da exploração física, territorial, chegando a
desbravar o humano de uma cidade que reúne vazios, sucata, memórias, ruínas,
através de um diversificado entrelaçamento de vozes que compõem sua narrativa.
Uma terceira interpretação do inventário advém da leitura da resenha crítica
da obra, feita por Maria José Furió, quem destaca que Estévez hace un inventario de
exilios. Desde Barcelona hasta Stuttgart, la condición de trasterrado es la que hace
sensible a todas esas figuras extrañas o perdidas, como el trompetista de Stuttgart o
50 Trad.: A ideia (dos inventários) foi reunir tudo o que fica de alguém e fazer com isso um retrato negativo. [.] Os inventários não ensinam nada sobre ninguém. Se único interesse é que cada pessoa que os veja encontre ali seu próprio inventário- todos temos uma cama, uma escova de dente, um pente. Aprendemos mais sobre nós mesmos que sobre a pessoa a quem concerne o inventário.
el mimo de Barcelona"51 […] Inventariar desde o meio físico até espaços intocáveis.
Nada espaça ao olhar atento de um sujeito deslocado.
Outra presença incontestável na obra é o discurso do diário. A partir da
definição de autobiografia proposta por P. Lejeune podemos conceber uma definição
também para o diário. Nas palavras de Sheila Dias Maciel,
Trata-se de um relato fracionado, escrito retrospectivamente, mas com um curto espectro de tempo entre o acontecido e o registro, em que um "eu", com vida extratextual comprovada ou não, anota periodicamente, com o amparo das datas, um conteúdo muito variável, mas que singulariza e revela, por escolhas particulares, um eu-narrador sempre muito próximo dos fatos. (MACIEL, 2011, p.11)
Pensando no contexto da obra, percebemos que a mesma se aproxima do
diário também na medida em que restitui a lembrança, por meio da narração, na
medida também em que promete uma maior profundidade do eu: "uma escrita
desprovida de amarras genéricas, aberta à improvisação, a inúmeros registros de
linguagens e do colecionismo [.]" (ARFUCH, 2002, p.143) Interessa-me em especial
a aproximação feita pela a autora entre a biografia e o diário ao destacar o passo
maior dado por este em direção a um íntimo menos "biográfico", que cede espaço à
angústia, o medo e o erotismo, por exemplo: "Apesar de luces, espejos e insomnios,
si cerraba los ojos volvía a sentirme en el cuartico (tan pobre) de mi casa en el
reparto Hornos, donde la sensación de aislamiento poseía, en aquellos años de mi
niñez, la misma intensidad que ahora.52 (p.88)
51 Trad.: Estévez faz um inventário de exílios. Desde Barcelona até Stuttgart, a condição de trasterrado é a que torna sensível a todas essas figuras estranhas ou perdidas, como o trompetista de Stuttgart ou ator de rua de Barcelona.
52 Trad.: Apesar de luzes, espelhos e insônias, se fechava os olhos voltava a me sentir no quartinho (tão pobre) da minha casa no bairro Hornos, onde a sensação de isolamento possuía, naqueles anos de minha infância, a mesma intensidade de agora.
Além disso, os diários, de um modo geral, criam a ilusão da espontaneidade
por meio das fragmentações e das elipses. A sua característica mais marcante,
segundo a autora, entretanto, diz respeito à presença do cotidiano, uma vez que só
há escrita em forma de diário se houver referências ao calendário, marcação
cronológica do tempo. Na obra, a referência ao final do texto de um lugar e data
precisos, nos faz ter a sensação de que acabamos de ler um diário pessoal:
"Barcelona, Palma de Mallorca, Flaçà, 2003- 2004." (p.340)
A ausência de marcação temporal ao longo da obra, entretanto, juntamente
com a ausência nominal, nos conduz a ler as revelações com incontestável
liberdade e beleza, como se de fato estivéssemos lendo um diário de um sujeito que
escreve durante a viagem: "Hace apenas una hora he andado por el paseo marítimo
de Palma de Mallorca […] y ahora estoy en un café desaliñado, bebiendo un vaso de
vino tinto frente a un camarero magrebí."53 (p.17). Estas são as primeiras palavras
da obra, por onde reconhecemos a presença do diário íntimo, o que sugere também
uma prática solitária do narrador que logo se modifica para o encontro com a cidade,
por meio de uma espécie de diário íntimo de viagem:
Por ejemplo, viajero, ahí tienes a La Habana, tanto tiempo descuidada, con tantos lugares que no son el casco histórico, o donde se hace amable la estancia a los turistas, tantos lugares como Luyanó o Marianao o El Cerro (en la zona del Canal), y donde, no obstante, los cuerpos humanos, por extraña paradoja, se han ido volviendo cada vez más hermosos. En ningún otro lugar del mundo los hay tan bellos […]54. (p.321/ 323)
53 Trad.: Faz apenas uma hora que andei pelo passeio marítimo de Palma de Malhorca [.] e agora estou em um café desalinhado, bebendo um copo de vinho tinto em frente a um garçom magrebino.
54 Trad.: Por exemplo, viajante, aí você tem Havana, tanto tempo descuidada, com tantos lugares que não são o casco histórico, os centros onde se faz amável a estadia dos turistas, tantos lugares como Luyanó ou Marianao ou El Cerro (na zona do canal) e onde, entretanto, os corpos humanos, por estranho paradoxo, foram se tornando cada mais belos.
Por extensão também vemos uma aproximação, como o próprio escritor
atestou, ao guia de viagens:
Quería escribir un libro de viajes. Me había hecho un propósito tal vez harto desatinado, o pretencioso, si bien se mira, que consistía en orientar al turista, al turista menos adocenado, reconducirlo, hacer que, en lugar de visitar los monumentos monumentos, visitara los otros, los monumentos no monumentos.55 (p.304)
O guia de viagem que se propõe a escrever, entretanto, desde outro ângulo,
não tão objetivo (como é próprio do gênero), ilumina espaços pouco visitados, até
então não mapeados pelas agências de turismo. Para o autor, o verdadeiro livro de
viagens deveria narrar as possíveis paixões, as emoções, enfim, o vivido,
experimentado nesses espaços, ao invés de se preocuparem com os possíveis e
encantadores lugares para visitar:
Hubiera sido muy útil un libro sobre los rincones ocultos, los baños públicos y las ruinas siniestras, que indicara donde has de ir para saber que se vive y se muere de otro modo, y aprender cómo tiene lugar esa tragedia sin visos de tragedia, a veces con tono de comedia de costumbres.56 (Habana p.305)
O livro de viagem, nesse caso, resultaria muito mais produtivo e original, pois
estaria oferecendo ao leitor a possibilidade de experiências mais autônomas e
genuínas. Utilizo o futuro do pretérito, no entanto, pois o resgate desses espaços
por meio da subjetividade correria o risco de tornar frívolo ou mecânico também o
olhar que se venha a lançar sobre o lido. Ao fim e ao cabo, cairia na mesma questão
55 Trad.: Queria escrever um livro de viagens. Havia feito um propósito talvez demasiado desatinado, ou pretensioso, se olhamos bem, que consistia em orientar o turista, o turista menos medíocre, redirecioná-lo, fazer com que, no lugar de visitar os monumentos monumentos, visitasse os outros, os monumentos não monumentos. Tradução livre de minha autoria (LGNM) para fins únicos que se apresentam nesta dissertação. O mesmo critério se aplica às demais traduções da obra de Abilio Estévez que se apresentarão a seguir. 56 Trad.: Teria sido muito útil um livro sobre os cantos ocultos, os banheiros públicos e as ruínas sinistras que indicasse onde se deve ir para saber que se vive e se morre de outro modo, e aprender como ocorre essa tragédia, sem marcas de tragédia, as vezes com tom de comédia de costumes.
do guia de viagem, dado a impossibilidade de passar para o papel o que somente se
experimenta a través das práticas cotidianas. Ainda assim, a autenticidade do
gênero não perde sua validade. Se comprarmos uma gama de livros turísticos
falando de Cuba, certamente o produto final é sempre mais do mesmo: mesmos
pontos turísticos, mesmas instruções de viagem, mesmas advertências, mesmas
paisagens e rotas. Em cambio, o narrador de Abilio Estévez, principalmente nos
fragmentos que se aproximam dos relatos de viagem, é um sujeito múltiplo, além de
ler o mundo de maneiras bem particulares, lança sobre a terra natal um olhar
secreto, no sentido da intimidade que guarda o vocábulo.
Em diversos momentos da narrativa também, evidenciamos uma clara alusão
ao turista como seu interlocutor, no capítulo quinto, principalmente onde o narrador
faz uma série de advertências para se descobrir uma cidade: "En las llaves (o grifos,
como suele decir usted, viajero) no hay agua."57 (p. 185); ou então: " ¿Por qué no
existe mejor lugar que la calle donde pasar la vida? Pues bien, querido viajero, […]
Pon atención, entiende: no posen otro lugar. No hay casas."58 (p. 185)
Também o discurso da crônica possui protagonismo em
Inventario secreto de
La Habana, ao nos oferecer um acervo de imagens recortadas do cotidiano e
resignificadas pelos cronistas da cidade. Mas essa significação, porém, na visão de
Gervácio Batista Aranha
[.] não implica em um corte com o referente da linguagem, não implica que a crônica se ofereça como metalinguagem separada do mundo que a gerou. E que ela se constitui enquanto um texto que traduz a inserção de seu autor no mundo em que viveu, tendo
57 Trad.: Nas chaves, (ou torneiras, como costuma dizer você, viajante), não há água.
58 Trad.: Por que não existe melhor lugar que a rua onde passar a vida? Pois bem, querido viajante. Preste atenção, entenda: não possuem outro lugar, não há casas.
absorvido, tanto quanto seus contemporâneos, os valores e a cultura da época, tendo ainda participado de suas angústias, seus dramas, suas esperanças. (ARANHA, 2009, p.3)
Está certo que a crônica como gênero literário se atém a uma série de
eventos aparentemente banais, que ganham outra "dimensão" graças ao olhar
subjetivo do autor. Mas, segundo Aranha (2009), se pensamos a crônica a nível de
discurso ela pode ser importante fonte histórica; verdadeiros documentos históricos
de escritores que produziram, sentiram a vida citadina para então representá-la. Nos
termos de Cândido (1992, p.14) apud Aranha (2009, p.7): "tudo é vida, tudo é motivo
de experiência e reflexão, ou simplesmente de divertimento, de esquecimento
momentâneo de nós mesmos [.]".
Aparecem na obra, então, com os mais variados propósitos que o discurso da
crônica permite, uma aquarela de visões sobre a cidade e sobre a cubanidade,
pintada tanto desde a ótica de reconhecidos cronistas nacionais, como Alejo
Carpentier e Julián del Casal como de cronistas estrangeiros como María Zambrano
e Federico García Lorca.
«No conozco calle más viviente -en el exacto sentido de la palabra- que la calle habanera. Y no se trata aquí de confundir viviente con pintoresco. Las calles andaluzas, los corsos marselleses, las avenidas de las ciudades mediterráneas pueden dar análoga sensación de vida. Pero esa sensación se afirma en función del pintoresquismo. Intervienen acentos, trajes típicos, sedimento -si bien lo analizamos- de tradiciones añejas. Nada semejante ocurre en La Habana. Hay barrios enteros que poseen un edificio antiguo capaz de otorgar decorado a una escena de vida popular. La gente aparece vestida con relativa uniformidad. Todo es moderno, actual. Y, sin embargo, la calle habanera se crea una vida nueva cada día. Se inventan comercios, industrias, humildes modos de "buscárselas", con pasmoso poder imaginativo. Brota la frase oportuna, la salida ingeniosa, con un salero eminentemente tropical. La mitología de los billetes, la simbólica freudiana de los números pone un olor de prodigio en el ambiente. Nada me regocija más que esos encuentros entre dos imágenes, surgidos al conjuro de cifras pregonadas por un billetero: "El toro con corbata. Majá navegando. La mariposa y la viuda." "Belleza del encuentro fortuito de un paraguas y una máquina de coser en una mesa de disecciones", exclamaría una vez más, oyendo a los billeteros de La Habana, el ilustre Isidore Ducasse, conde de Lautréamont.» Alejo Carpentier, <<La Habana vista por un turista cubano>>, Crónicas (1939) (p.156)
Intercalados a essas grandes narrativas dos renomados autores citados, o
narrador de
Inventario secreto de La Habana opõe seus mínimos relatos, suas
crônicas "menores" do cotidiano havaneiro, numa singular harmonia que exalta sua
crônica mais íntima da cidade. Daí que surjam espaços para as vozes tão calorosas
e familiares como as do primo Neno, com suas infindáveis aventuras e anedotas da
ilha, ou a tia Tita com suas histórias de terror narradas pelas "vozes do mar" (p.40); e
tio Roberto o Belo que carregava consigo durante toda a sua vida o sonho de se
radicar em Miami: "Esta tierra es una mierda, tierra de paso, nada más"59 (p.45) Ou
mesmo sua mãe, com sua sábia sabedoria popular: "<<La tristeza más triste>>, dice
mi madre, que, a su modo, es tan sabia como Borges, <<se oculta trás una máscara
de fiesta.>> Y termina con un suspiro: << ¡Qué angustia hay que tener, Dios mío,
para andar siempre de bailoteos, con la jarana y la sonrisa en los labios!>>"60 (p.21)
Apesar de se valer de fontes e referências bem explícitas de historiadores e
cronistas da cidade em sua narrativa – fato que aproximaria o autor de um discurso
historiográfico – Abilio Estévez segue um caminho diferente do acadêmico, no que
concerne ao rigor científico- metodológico do trabalho do historiador. Isto é, ao por
em cena um narrador que processa subjetivamente tais fontes, se aproxima de outro
discurso, o memorialista:
Entendemos como memorialistas escritores que utilizam diversas ferramentas e fontes em seus textos, as vezes resultando em textos de cunho autobiográfico, nos quais o autor utiliza a sua experiência de vida e a tradição oral, da cidade sobre a qual escreve para construir a narrativa histórica, sem que para isso se utilizem das normas metodológicas e teóricas da escrita acadêmica sobre história. (DOMINGUES, 2011, p.2)
59 Trad.: Essa terra é uma merda, terra de trânsito, nada mais.
60 Trad.: <<A tristeza mais triste>>, diz minha mãe, que, ao seu modo, é tão sábia quanto Borges, <<se esconde atrás de uma máscara de festa.>> E termina com um suspiro: <<Que angústia tem que ter, meu Deus, para andar sempre dançando, com algazarra e o sorriso nos lábios!>>
Assim sendo, segundo o historiador Jose Antonio Vasconcelos, dentre as diversas
vias de acesso ao passado, o discurso memorialista na forma de textos literários
também se constitui importante fonte historiográfica. A aproximação feita pelo o
autor, entre os discursos historiográfico e literário então, nos permite considerar o
papel da linguagem, no caso de Abilio Estévez, na reconstrução do passado e o
modo como o seu discurso memorialista se configura como literatura, enquanto
reconstrói um segmento da história cultural cubana por meio de sua escrita.
Complementando a visão de Vascolelos (2011), Viviane Pedroso Domingues
(2011) nos diz que:
A narrativa memorialística muitas vezes pode ter elementos ficcionais, mas no geral sua busca no passado é também imbuída da necessidade de encontrar elementos explicativos do presente. O interesse pela história é evidente e apesar de não serem textos propriamente científicos, com pesquisas que levaram a uma narrativa histórica consistente, são, ao meu ver, derivados da consciência histórica e de uma necessidade sobre o passado, que não é sentida apenas por historiadores. (DOMINGUES, 2011, p. 11)
O narrador da obra, ao se debruçar também sobre os poetas memoriosos da
cidade e autores reconhecidos pela crítica literária, devolve aos poetas cubanos, o
prestígio que lhes fora negado ao longo da história, ao questionar a própria
monumentalização encontrada na cidade, por exemplo:
El viajero astuto enseguida descubre que ninguna calle de La Habana lleva nombre de poeta. Y cuando encuentra una rara excepción, es porque el poeta, además, peleó en alguna antigua batalla y, por lo tanto, se le puede levantar la consabida escultura ecuestre (¡Mucho mejor si el caballo tiene levantadas las dos patas delanteras!). Sólo por poeta La Habana no considera a nadie.61 (p. 266)
61 Trad.: O viajante astuto logo descobre que nenhuma rua de Havana leva nome de poeta. E quando encontra uma rara exceção, é porque o poeta, além disso, lutou em alguma antiga batalha e,
E termina por considerar:
La Habana, es evidente, ha tenido siempre a los poetas bajo sospecha. No los quiere, casi los desprecia, los deja morir en las peores condiciones y luego (menos mal) no se preocupa por recordarlos.62 (p.266)
Resgatar o passado por meio de um olhar memorialista, portanto, traz
perspectivas diferenciadas da prática literária de um autor que vive em condições de
deslocamento. Um olhar que busca entender seu presente por meio de um regresso
crítico, poético, literário de um passado individual e coletivo. Essa criticidade,
portanto, tende a ser resultado da experiência diaspórica que estabelece diálogos
múltiplos entre tópicos antes pouco concebíveis de uma aproximação, como o
próprio discurso historiográfico e o discurso literário.
3.2. O eu que lembra e o eu que fala em Inventario secreto de La Habana
. Nas escritas de si, o sujeito é livre para inventar sua vida e pode forjar uma narração
transnarcisista voltada para seu trabalho artístico. Assim, a autoficção de artistas reflete sobre as
envolturas do eu, sua fugaz coerência, sua incompletude."
(BOLAÑOS, 2012, p.85)
Na busca por identificar os procedimentos literários que levam Abilio Estévez
a construir o seu eu ficcional está a presença de múltiplas vozes, sejam elas
capturadas por uma memória histórica ou familiar, literária ou autobiográfica,
ficcional ou não ficcional. As memórias, o relato autobiográfico, o diário e a crônica
portanto, se pode levantar a habitual escultura equina (melhor ainda se o cavalo tem levantadas as duas patas dianteiras!). Somente por poeta Havana não considera ninguém.
62 Trad.: Havana, é evidente, sempre manteve os poetas sob suspeita. Não os ama, quase os deprecia, deixa que morram nas piores condições y então (menos mal) não se preocupa em lembrá-los.
da cidade se misturam de um modo singular, de maneira que ao escrever de sí,
Abilio Estévez narra a cidade de Havana e através de suas memórias revive um
passado ao passo que imagina uma cidade que pouco a pouco deixa de ser secreta.
"Hay en La Habana personas obstinadas, a contracorriente, ajenas a la epidemia
nacional del olvido y empeñadas en vivir una ciudad que no existe."63 (p.196).
A figura do escritor, Abilio Estévez, ao se valer dos mais variados discursos
da memória (discursos memorialista, autobiográfico, da crônica, do diário e do
inventario) e consequente posta em cena do seu eu ficcional, instaura uma espécie
de máscara literária que produz um efeito de mistério em relação à sua verdadeira
identidade. De maneira que tanto em Cuba como na Espanha (ou em qualquer outra
parte do globo), sejam seus leitores mais assíduos, ou um leitor esporádico, seja
este do seu convívio pessoal ou bem totalmente desconhecido, indistintamente,
todos são levados a se fazerem a mesma pergunta em diversos momentos de
Inventario secreto de La Habana: será que isso realmente aconteceu?
Segundo Palmero González (2013):
Observa-se que detrás de uma prolixa exposição de dados biográficos, o eu narrativo destas memórias apresenta-se sempre sem nome, construindo uma imagem de duplo sentido: por uma parte, se explicita como sujeito memorioso; por outra, evade-se de marcar uma identidade nominal. (Palmero González, 2013, p.232)
Diversas são as formas dessa evasão nominal. Ao se valer do diário, tanto o pessoal
quanto o de viagem por extensão, por apresentarem as mesmas características
genéricas, o narrador chama à cena o seu interlocutor. No primeiro, um leitor ávido
por descobrir revelações pessoais, no segundo um leitor reconhecido na figura do
turista que descobre uma cidade.
63 Trad.: Existe em Havana pessoas obstinadas, a contracorrente, alheias à epidemia nacional do esquecimento e empenhadas em viver uma cidade que não existe .
Em
Inventario secreto de La Habana acontece um duplo e simultâneo
movimento de aceitação dos fatos narrados como verdade e ficção. Não é intenção
do narrador resgatar o passado tal qual vivido, da mesma forma que não é objetivo
do autor narrar sua biografia. Mas ele não impede que assumamos o pacto quando
se coloca a meio caminho entre os dois discursos:
Se podrá objetar que describo mi experiencia, que hablo desde mi inevitable conocimiento personal. Quizá. Yo no hablo como actor. Me he dedicado a mirar. Siempre he sido un mal actor; nunca me he entregado en cuerpo y alma a mi personaje. Los demás personajes me atraen tanto como el mío, tal vez más. Incluso ese personaje soberbio que está del otro lado de la cuarta pared, el espectador. Así como prefiero leer a vivir, prefiero contemplar antes que representar.64 (p. 319)
Até mesmo o questionamento entre realidade e ficção e a confusão entre
personagem e autor são reveladores da poética de Abilio Estévez. O narrador tem
consciência dessa dinâmica que ora revela ora esconde traços de sua configuração
narrativa, mas transfere para o leitor a decisão de compactuar ou da realidade ou da
força imaginativa de sua criação.
Nas palavras de Palmero González (2012),
Especulo que esse sujeito, esquivo e exposto, presente e ausente, múltiplo e único que é Estévez, seja o resultado natural da invenção memorial. Lembremos que no ato de recordar, constrói-se também uma imagem de si e que essa auto-invenção, como explicam Brunner e Weisser (1995), cria separações entre o
eu que relata no instante do discurso e os
eus esquematizados na memória. Diante da impossibilidade de fazer coincidir todos esses
eus, Estévez opta pelo jogo de guardar/esconder um nome e exteriorizar funções: o eu leitor, o
flâneur, o
vogeur, a testemunha, o guardião das memórias havaneiras. (Palmero González, 2012, p. 19)
64 Trad.: Se poderá objetar que descrevo minha experiência, que falo desde meu inevitável conhecimento pessoal. Talvez. Não falo como ator. Dediquei-me a observar. Sempre fui um aml ator; nunca me entreguei de corpo e alma a meu personagem. Os demais personagens me atraem tanto quanto o meu, talvez mais. Inclusive este personagem soberbo que está do outro lado da quarta parede, o espectador. Assim como prefiro ler a viver, prefiro contemplar antes que representar.
Em já citada entrevista com Abilio Estévez, sintetizada por Asunción Horno
Delgado (2006) lemos:
AHD: ¿Cómo asumes la contradicción? ¿Cómo vives diariamente en medio a todas esas contradicciones?
AE: Si ellas están en mí, yo soy eso, soy esa cosa rara. Como te decía, uno no está para resolver el misterio sino para crearlo. Creo que la literatura es eso: es mitificarlo todo, es destruir un mito para volverlo a hacer. Creo que yo soy ese misterio que ni yo mismo entiendo a veces, con contradicciones y las anoto en el libro que estoy escribiendo. Pues bueno, ahí se queda. (DELGADO, 2006, p.155)
O mais próximo que conhecemos da identidade do autor é que o pai se chamava
Abilio e uma referida autoria de sua premiada peça teatral "La verdadera culpa de
Juan Clemente Zenea". Ambas, entretanto, referências feitas ao narrador e não ao
autor. Já no colofão da obra, Abilio Estévez tece agradecimentos às pessoas, obras
e escritores que o ajudaram na escrita do livro, dado paratextual que nos dá indícios
também de uma presença autobiográfica, referida desta vez ao próprio autor.
Benjamin (APUD Arfuch, 2013, p.55) em
El origen del drama barroco alemán,
evidencia o "rodeio" como estilo indireto ou alegórico, um método segundo o qual se
reconhece uma fragmentação temporal e onde não há a intenção de se referir aos
fatos tal qual ocorrem: "un reconocimiento explícito de la dimensión simbólica, de la
imposibilidad de restitución de escenas y momentos; el asumir que sólo tenemos
"relatos de relatos" y la
forma que logre imponerse sobre la narración es esencial.65
(ARFUCH, 2013, p.55).
O rodeio na obra de Abilio Estévez representa a distância que o autor
estabelece com a própria biografia. O que deixa assomar à narrativa, o que negocia
e traduz, o que foge ao seu controle no momento de leitura, seja por meio da ficção,
65 Trad.: Um reconhecimento explícito da dimensão simbólica, da impossibilidade de restituição de cenas e momentos; o assumir que só temos ‘relatos de relatos' e a forma que consiga se impor sobre a narração é essencial.
seja através da biografia de outros personagens, ou mesmo o que deposita no lócus
de sua imaginação. Este é o efeito que se processa no multifacetado espaço
biográfico contemporâneo, "donde conviven los géneros canónicos – revitalizados-
con un sinfín de otras formas, en un proceso creciente de hibridación. [.] (que)
asumen el desafio de encontrar nuevas maneras de abordar un yo -un nosotros –
cada vez más elusivo." (ARFUCH, 2013, p.55). Um eu, portanto, reflexo do seu
emponderamento narrativo, resultante do deslocamento vivenciado.
CONCLUSÕES
Chegando a este ponto do trabalho, teço algumas considerações finais:
A intensa mobilidade cultural e o transito fluido de imagens, signos, valores
que caracterizam o mundo transnacional de hoje geram também poéticas muito
singulares da escrita. Nesse cenário de fluidez inaugurado pela contemporaneidade,
a memória surge como tema central do nosso tempo, achando expressão literária
em formas discursivas que privilegiam o memorialístico, com ênfase na
autoreferencialidade e apego à ruptura de fronteiras entre realidade e ficção. Isso
explica a singular eclosão de autobiografias, das autoficções, dos textos
memorialistas e dos diários de escritor, entre outras modalidades discursivas da
Nessa encruzilhada situo o estudo de
Inventario secreto de La Habana, de
Abilio Estevez, escritor que produz sua obra atual em condições de deslocamento
cultural e em cujos textos a memória é tema e importante recurso literário. Na obra,
o narrador percorre uma Cuba secreta, condicionado principalmente pelo
deslocamento geográfico e temporal que vivencia, através de uma escritura
modalizada pela
memória. Esta memória muitas vezes se confunde com a memória
resgatada e revivida pelos personagens de
Inventario secreto de La Habana e a
memória do próprio autor.
Ao delimitar espaços físicos, como no contexto aqui apresentado de Havana-
Barcelona e ao estabelecer o diálogo entre diferentes temporalidades da vida do
narrador, a reconstrução memorial do autor tende a inventariar o que restou do
vivido. Além do mais, nesse processo de resgate/ invenção do passado, ao longo
das 343 páginas da obra, assoma-se a narrativa uma amálgama de vozes, onde a
presença autobiográfica é uma a mais. Neste sentido percebemos que a memória,
atrelada a uma presença autobiográfica, se constitui como um passado presente,
uma vez que é motivada pelas experiências do vivido, mas com ancoragem no
presente da narração.
A trama social e afetiva de seus personagens, subjugada aos espaços da
cidade é reveladora de subjetividades, tanto num nível ficcional, quanto no âmbito da
formação de identidades pessoais e nacionais, num jogo de construção e
desconstrução de imaginários.
Da mesma forma, o universo criativo de Abilio Estévez é marcado pela
textualização da experiência deslocada, configurativa da própria experiência do
autor, sensível a lógicas outras de habitar o mundo. Espacialidades descontínuas no
tempo e no espaço que possibilitam um olhar sensível para o trajeto, o percurso, a
mobilidade, o deslocamento, a viagem, o movimento ou a flutuação.
Num contexto mais amplo e como conclusão mais geral, é possível afirmar
que o trabalho de Abilio Estevez com a memória, a autoreferencialidade e a
hibridação de discursos em
Inventario secreto de La Habana se articula
coerentemente a uma caraterização de uma poética do deslocamento.
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CLINICALThe 20 most frequently prescribed drugs – that your patients may be takingPhilip Atkin and Helen Rogers out-of-hospital prescription are immunomodulatory or biologic A key part of safe dental practice is knowing and understanding the drugs, both by cost and also number of prescriptions. medical conditions patients will present with, and how these conditions
WORKING PARTIES ON LEUKAEMIA IN ADULTS AND CHILDREN TRIAL IN ACUTE MYELOID LEUKAEMIA OR HIGH RISK MYELODYS PLASTIC SYNDROME 17 PROTOCOL FOR PATIENTS AGED 18 to 60 (Trial Reference ISRCTN55675535) Through the use of a risk based approach AML17 will evaluate several relevant therapeutic questions in acute myeloid leukaemia (AML) as defined by WHO, and high risk Myelodysplastic Syndrome. The trial is open to all patients aged 18 to 60 years, and also to patients aged 60 years or over for whom intensive therapy is considered appropriate. At least 2800 patients will be recruited. For patients who do not have the Acute Promyelocytic Leukaemia (APL) subtype, an induction randomisation will compare two courses of the standard ADE with ADE or DA each in combination with one of two doses of the immunoconjugate Mylotarg in course 1 (five options). Consolidation will compare one course with two courses (MACE/Midac versus MACE).